sexta-feira, 17 de junho de 2011

Derrota

Uma das razões para eu procurar colocações em outras áreas que não a minha de "formação" (?!) é que simplesmente eu não compreendo nada do que envolve o direito e suas utilizações.

Sempre que vou num fórum ou num cartório eu preciso ter um rol bem definido do que fazer, um texto ensaiado do que dizer, porque se sair desse esquema eu vou me atrapalhar, eu não saberei o que dizer, eu vou errar.

A minha faculdade foi lamentável, em matéria de ensino, e meu estágio foi praticamente extra-jurídico. Experiência: zero. Saí da faculdade como se nunca tivesse visto nada daquilo tudo. E aí agora preciso me forçar a entender que vou ter que viver disso o resto da vida, me arrastando como um verme por entre conceitos, livros e práticas que eu não aprovo e nem compreendo.

Seja para protocolar uma peça ou para pedir cópia, se me perguntarem algo do processo eu ficarei nervoso. Corarei, gaguejarei. Serei como aquele ator que não sobrevive ao improviso do colega, o "stage fright" já se apoderou de seu caráter, se ele tenta sair de si é porque não haverá mais volta para ele.

E eu me sinto mal. Sinto-me atrasado, imbecil, indecente. Como se todos fossem capazes de entender uma verdade óbvia e eu continuasse na dúvida. Sinto-me humilhado com os olhares inquisidores de reprovação, com as atitudes que condenam minha incapacidade, com os êxitos e facilidades dos outros. Para eles é tudo simples, evidente.

Eu não sei o que extrair disso. Eu não sou um daqueles hipócritas que, indagados sobre possíveis arrependimentos na vida, dizem: "eu só me arrependo do que não fiz". Eu me arrependo de muitas coisas, e a principal delas foi a que praticamente me condenou. Já não tenho mais ânimo ou condições de falsear coragem nessa batalha.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Círculo

Em meses de inatividade (por várias forças, sendo a principal o desânimo), eu tento vez ou outra vislumbrar alguma expectativa adiante, mas só me iludo. Hoje vejo no jornal: "repórter da revista tal - ver caderno de empregos". Muito bem: o caderno de empregos diz que é preciso domínio de inglês, base cultural considerável e EXPERIÊNCIA EM REPORTAGEM. Ora, se todos os empregos e vagas só são preenchidos com gente experiente, what's the purpose ("domínio de inglês")? A coisa vira uma simples "panelinha": quem tá fora quer entrar, mas quem tá dentro não sai. É isso. Só se vai de um veículo a outro, e se você não é um dos "iniciados", vai ficar sem essa oportunidade. Cansa até falar em hipocrisia, então eu paro aqui.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Cequesabe

Com o recente e crescente debate acerca do humor pra lá de duvidoso dos integrantes do CQC, estamos em dias de "repensar" nossas abordagens em comédia e "avaliar" se o que dizemos ou do que rimos é realmente algo assim tão engraçado.

Talvez seja bom refletir sobre o assunto, mas eu já estou me cansando. Blogues e redes sociais e comunidades virtuais não param de produzir quilométricos textos discutindo as tais "piadas" e demais características do problema. Mas o meu problema é: por que é tudo tão oito ou oitenta?

Eu concordo com quem diz que o CQC é um programa preconceituoso travestido de revolucionário, que destila imbecilidades com a mesma facilidade com que se cobre com o manto do "politicamente incorreto". Mas será que deveríamos nos preocupar tanto com esses caras?

Quem os acusa, defende uma visão RADICALMENTE OPOSTA à que eles possuem. Então são totalmente pró-aborto, feministas, a favor dos direitos homossexuais. Mas uma defesa irrestrita é tão "one-sighted" quanto um ataque irracional. Por exemplo, com relação ao último desses tópicos, eu tenho algumas considerações (que listarei em forma de itens):

1) Não me interessa saber a sexualidade dos outros. Não deveria interessar a ninguém saber a sexualidade dos outros. A não ser que você quisesse se relacionar com a pessoa, e isso não deixaria de ser pessoal.

2) É hipocrisia embarcar na denominação ultrapassada há décadas de "opção sexual", como se alguém optasse por tal ou tal "preferência" por pura liberdade de escolha. E a presidente do Brasil só faz concordar com esse absurdo.

3) Evidentemente os homossexuais têm direito a direitos (redundância necessária), não se deveria sequer discutir sua vida privada na hora de tratá-los como qualquer outro cidadão, possuidor de direitos e deveres.

4) Da mesma maneira que os homossexuais têm direitos, os conservadores (que todos tratam como "homofóbicos", o que não é verdade; homofobia implica hostilização) também têm direitos. Se um homem heterossexual se sente incomodado ao passar com seus filhos pequenos na frente de um casal homossexual se beijando apaixonadamente, qual o problema?

4.1) Não há problema algum. O homem evidentemente ficará um pouco constrangido para explicar a situação aos filhos. Ficar constrangido ou incomodado NÃO é repulsa ou agressão. Não são apenas os homossexuais que têm direitos a sentimentos.

4.2) Se já é um tanto desagradável ver casais heterossexuais em carinhos mais "fortes" em locais públicos, por que os ativistas se escandalizam quando o comentário é de que a pessoa ficou "sem graça" ao flagrar esse mesmo comportamento por parte de homossexuais?

5) Não é preciso ser um Bolsonaro, estúpido e virulento, para discordar dos extremos da questão. Todo mundo conhece aquele casal homossexual que, para "chocar" (eivando-se de blindagens como: "é meu direito" e "você é homofóbico"), comporta-se de maneira socialmente inadequadada — o que pode acontecer com qualquer pessoa, ressalte-se; disse lá acima e reitero: todos são iguais — e constrange quem quer que os observa.

6) Não se trata de preconceito, é preciso repetir. E nem de "façam o que quiserem, dentro de casa". Eu não sou integrante do CQC. Eu não concordo com segregações e distinções. Só acho que tão ruim quanto a serra que corta o tronco é o tronco que quebra a serra. É preciso dar voz a todos e direitos a todos sem com isso criar ódio, intolerância, oportunismo.

6.1) A maneira para conseguir isso, creio, é simplesmente fazendo o que eu disse no começo do texto: esquecer a sexualidade alheia. As pessoas são boas, ruins e mil outras qualidades por méritos e ações próprias, por centenas de fatores e condicionantes, e não há nada de especial em ser homossexual ou heterossexual ou o que seja, se você quer uma vida sem inúteis rótulos reducionistas.

Mas claro que se você defende quem vai de encontro aos babacões de plantão, te jogam no balaio e você vira mais um idiota reacionário.

P.S.: Só para esclarecer à minha irmã, stalker número 1 do blogue: o post anterior é relacionado a um problema MEU (olha o ciúme aí de novo), só isso.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Ciúme - O inferno do amor possessivo

Uma das minhas piores qualidades é o meu ciúme. Essa é uma dimensão incontrolável da minha personalidade, e eu tento domá-la com sua pura constatação; nem sempre consigo, contudo.

Não tenho muitos amigos, não tenho namorada e não tenho muito em que me firmar ou de que me orgulhar. Portanto, me resta o material. Tenho ciúme das coisas físicas, dos meus objetos. São eles a minha História.

A coisa se verifica geralmente com meus irmãos. Desde há muitos anos, eles nunca demonstraram interesse pelas coisas de que eu gostava, que importavam a mim e das quais necessitava, no sentido que seja. Nunca quiseram saber o que eu lia, o que me tocava, de que tendências eu me preenchia. E hoje eles têm consumido algumas coisas que sempre foram caras a mim. Minha irmã, por influência do namorado, vê filmes que sempre indiquei ou vi e para os quais ela não ligava a menor relevância, não queria me ouvir falar sobre, não podia se importar menos; meu irmão, por influência talvez de amigos ou de certas mídias, outro dia comprou um livro de um personagem que leio desde que estava na escola, e também para o qual ele nunca consagrou qualquer atenção.

Essas coisas todas, sejam elas discos, livros, filmes, quadrinhos ou o que for, eu as tinha como MINHAS, são minhas amigas, meus pertences. Eu não tenho amizades e não construí qualquer coisa na vida, então o que me define são elas, as coisas, que moldaram meu caráter e transformaram meu gosto, minhas percepções e sentidos.

Então quando vejo o interesse dos meus irmãos, por exemplo, eu me sinto um pouco incomodado, quase atacado. Como se tirassem parte da minha individualidade. Eles aproveitam tudo isso independentemente de mim, talvez até APESAR de mim. Claro, não posso e não vou impedi-los de consumirem bons produtos do que quer que seja, mas reservo a mim o duvidoso direito de me ressentir com isso. De ver que a minha História, afinal, não é minha, essas coisas não dizem mais a mim do que dizem a eles, quem sabe?, e eu tenho que procurar agora, assim à força, seguir um caminho próprio, livre de interferências, onde sentimentos ruins como o ciúme não façam parte de mim.

É difícil, muito difícil. Ver alguém que viveu a vida toda junto a você e não te conhece para saber como é meio um tanto um pouco desagradável comprar aquele livro que você tem desde pequeno, ou aquele álbum que foi seu favorito da adolescência, só agora descobrem tudo isso e você se sente traído por essas mesmas coisas que foram seu único amparo durante não sei quanto tempo. Deve ser por coisas assim que os monges se desprendem de tudo. Coisas materiais representam lembranças, eventos, condições.

No mais, isso tudo deve ser falta de namorada mesmo.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Malhação

Saiu há poucos dias na mídia a notícia de certos policiais que dançaram o hino nacional "à la mode" funk carioca. Choveram comentários de repúdio, consternação e pasmo. À parte uma meio inquestionável boçalidade dos policiais, o que eu vi foi, da parte dos espectadores tardios do episódio, uma pavorosa demonstração de apego a valores que já deveriam estar sepultados há décadas. Vi comentários na base do "é um absurdo, é um símbolo brasileiro", "é criminoso, não se deve nem cruzar os braços durante o hino" e "que belos policiais temos no Brasil!". Sim, mas vou além: que belo país temos no Brasil!

A obrigatoriedade de se emocionar com hinos que só dizem respeito a projetos militares e páginas negras da nossa História (eleições e solenidades burocráticas, por exemplo) é um sinal de atraso e portanto uma vergonha. Essa mentalidade condicionada, de que hino é respeito, se atrela a outras vulgaridades, como as noções sempre estapafúrdias de pátria, nação, terra e respeito. Hino é um símbolo de medo, pois não se pode tocá-lo com mãos profanas, temor religioso de desrespeitar seu solo. O solo de um país é desrespeitado pelas maldades que nele se cometem, e não por desapego à "memorabilia" cívica, esperando estar naqueles segundos de cantoria decorada prestando um grande serviço à consolidação de nossa identidade.

Eu não me identifico com nada disso. Gosto da nossa bandeira e do nosso hino, mas como curiosidades e adereços, e não gostaria de ver assolar o Brasil uma onda como a do ufanismo absurdo que contaminou toda a percepção universal de certa parcela do pessoal dos Estados Unidos, por exemplo.

Acho que aqui se está longe disso, mas não custa nada dar o meu malho nesse Judas do egocentrismo nacional.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Encantamento

Temos por "mágico" tudo aquilo que não tem explicação clara, científica ou racional. Mas eu acho que há magia em tudo, todos os dias, e não percebemos nem nos damos conta. Muitas vezes, saber a origem de determinado fato não basta para me fazer crer que aquilo seja vulgar.

Televisão, por exemplo. Todos os dias temos transmissões em tempo real, eventos mil e qualquer outro tipo de programação. Mas não é mágico capturar instantes das vidas das pessoas e eternizá-los? Não é mágico ligar um aparelho em sua casa e ver imagens de situações que estão ocorrendo naquele mesmo instante em um outro lugar do mundo? Não é mágico, enfim, transmitir imagens e sons e cores por todo o planeta? Sei que para tudo há explicações físicas, químicas, matemáticas, mas por que deixar de se admirar?

As coincidências também não deixam de ser apenas, bem, coincidências. Mas eu gosto de contar o que aconteceu quando fui comprar a edição em inglês de Fahrenheit 451 (que será uma de minhas próximas leituras): eu já tinha a tradução brasileira, mas queria ler no original, e, mesmo o livro de bolso sendo relativamente barato, fiquei hesitante um bom tempo, me sentindo culpado por jogar dinheiro fora, aqueles arrependimentos do consumo que nos fazem suar por agonias bobas relacionadas ao vil metal, espaço físico em casa e outras mundanidades. Então, após minutos de compro-não-compro, pego o livro, vou ao caixa, pago e vou embora nada satisfeito. Mas, ao sair da livraria para a rua, deparo-me com uma loja chamada... MONTAG! Que é justamente o nome do protagonista de Fahrenheit 451. Fiquei feliz com a aquisição.

Sei que é uma coincidência compreensível: a loja sempre esteve lá, aparentemente é uma marca famosa (eu não conhecia), e não foi um acontecimento extraordinário eu comprar um livro que deu origem a um filme de François Truffaut, pois não é de hoje que o admiro e busco suas fontes; também gosto de Bradbury, tendo me impressionado muito com seus quadrinhos de horror.

No entanto, não é impressionante quando todos os fatores se juntam para um determinado efeito de impacto? Quero dizer, não é incrível quando coincidências ocorrem? Então por que tirar seu mérito afirmando: "isso pode ser explicado"? Sim, claro que pode, Holmes já disse que "todos os problemas se tornam infantis depois de explicados". Mas haverá menos fascínio quando você conhece a causa do assombro?

quinta-feira, 5 de maio de 2011

O limbo

Há uma pedra, redonda, que rola para lá e para cá ao sabor das circunstâncias: ela se move por força do vento, pela conformação do solo, por inércia. Essa pedra é qualquer um. Há uma pedra, redonda, que poderia rolar para lá e para cá ao sabor das circunstâncias: não há vento, o solo é plano e ela é inerte em sua estagnação. Essa pedra sou eu.

Já falei aqui que tenho problemas com coisas óbvias a todos, e talvez seja essa a razão de ser pedra parada. É como se eu vivesse em uma outra dimensão em que nenhuma força pode me mover, como se eu não tivesse ligação nos nervos para correr e não tivesse qualquer atividade cerebral, cérebro pulsando, coração batendo. É aquilo de "existir, mas não viver".

Não sei dizer o que ocasiona aos outros as oportunidades que nunca me sorriem: iniciativa, sorte, acaso. Só sei que para os outros as coisas a meu ver são mais fáceis, mais propícias, mais nítidos os caminhos por que devem seguir, o que devem fazer, como agir.

Talvez eu reclame demais, talvez não (afinal, as coisas se passam comigo e só a mim sei quanto afetam), mas parece-me que é como se Cupido me flechasse com setas sem ponta, Minerva me desse apenas a ilusão de sabedoria e Vulcano me dissesse: "trabalhe, e trabalhe duro", mas sem me dar qualquer ferramenta para exercer ofício que seja. E enquanto eu não tenho nada a IMPEDIR a plena manifestação de meus poderes, nada tenho para DESENVOLVÊ-LOS, e noto-me sozinho numa ilha que até Júpiter esqueceu de castigar com seus raios prepotentes.

De vez em quando é bom saber que te enxergam.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Substituições

Após cerca de uma dezena de anos comprando e colecionando centenas de DVDs, agora o Blu Ray parece ter se instalado de vez. Vejo muita gente substituindo seus filmes, comprando as tais "ultimate editions", gastando um grande dinheiro e tempo em juntar Blu Rays de seus filmes favoritos, os mesmos que já se tinha em DVD.

A mim, isso não traz outra coisa que preguiça. Ao invés de me coçar para querer substituir tudo, essa febre teve efeito contrário: meu consumismo encontra-se moribundo, e quase não tenho vontade nenhuma de comprar mais nada nesse novo formato (e nem no anterior). Pelo menos não enquanto não acabar de ver todos os DVDs que tenho encalhados, ou enquanto os Blu Rays não baixam de preço, ou enquanto isso não tiver mais importância para mim.

Porque no final das contas essa cultura de substituição só mostra como tudo isso é dispensável. Assim como o VHS foi substituído pelo DVD, o DVD vem sendo recolhido pelo Blu Ray, e o Blu Ray daqui a poucos anos será trocado por outra mídia. Isso me cansa, essa necessidade de se atualizar em tão pouco tempo. Mais uma vez esbarro no velho conflito truffautniano do provisório versus o definitivo. E já sabemos quem costuma ganhar esse embate.

Também é sintomática a migração massiva do Orkut para o Facebook, e novamente em mim isso tem efeito diverso ao esperado: não quero mudar minhas fotos, trocar de "plataforma" ou construir outro perfil virtual; simplesmente canso e passo a usar essas redes com bem mais contenção. Daqui a um tempo, quem sabe eu não consiga uma vida real que faça minha vida virtual ser apenas um acessório extremamente fútil?

Isso serve para mostrar à minha geração a falência desse estilo de vida. No final das contas, crescemos e nos desligamos de tudo isso: arranjamos empregos, namoradas, responsabilidades e deixamos de lado o que achamos que era importante no computador, na internet, nas redes. Agora valorizamos mais estar com os amigos, sair ou fazer outras atividades, e todo o nosso compartilhamento virtual se resume agora a informações telegráficas ou piadas ligeiras. Acabou o entrosamento, o debate e a relevância de tudo isso. Muita internet serviu para nos mostrar que precisamos de menos internet. A invasão já foi muita, e agora nossa intimidade deseja privacidade. De novo, até outra coisa alterar isso, e outra coisa depois.

É melancólico constatar em históricos de MSN como mudamos, como as coisas deixam de ter importância e como tudo muda rápido: em um período de cerca de cinco anos, deixamos de falar com quem falávamos muito, não nos influenciamos mais tanto pelo gosto e opinião alheios, não queremos mais impressionar ou formar uma existência digna fora de nossa realidade física. Agora a internet é coisa de momento, como o era quando surgiu. O Blu Ray é assim também. E tanta tecnologia nos indica que não necessitamos dela. É uma contradição que se faz cada vez mais presente.

Acabamos voltando às velhas formas: com tanta modernização forçada e passageira, a melhor opção é pegar um livro, sentar-se e ler.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Fim

Quando as coisas acabam, elas deixam uma marca indelével na gente.

Eu estou no fim da leitura de Don Quijote, a menos de cinqüenta páginas do término, e a sensação é dúbia: por um lado sinto-me extremamente feliz por ter lido uma obra tão linda e fascinante, e por outro é como se eu estivesse deixando uma parte de mim com a leitura. Acompanhei durante mais de três meses os devaneios do fidalgo e seu escudeiro, os dramas e comédias de que foram vítimas e também a vida de mil pessoas com que se depararam. E aí acabo assim, numa semana qualquer, já pensando no próximo livro a ler. Don Quijote morto mas imortal.

Também sinto-me estranho com o fim das relações, quando elas desaparecem desse modo inesperado. E um amigo se vai, outro o substitui, a gente vai vivendo, se acostumando com as ausências e tentando acreditar que a memória é suficiente para dar cabo dos momentos de agonia e torná-los felizes com as recordações de antigamente. Da mesma maneira que trabalhamos anos a fio em um prédio, nos realojam em outro edifício, outro bairro, e naquele antigo lugar de trabalho ficou um pouco de nossa História. E como isso pode ser recuperado?

A verdade é que precisamos a todo instante de paliativos para os sofrimentos que podem comprometer nossas vidas, remédios para as pequenas ou grandes infelicidades cotidianas. Então consumimos arte, saímos, conhecemos outras pessoas, mudamos de emprego e vamos estudar em outro curso ou faculdade, tentando um dia se ajeitar no definitivo e largar de vez o provisório; e vamos claudicando, batendo a cabeça, com os olhos meio inchados pelas lágrimas em vão repelidas das oportunidades perdidas, e tentamos ir em frente.

E aí cada vez mais eu me assombro com a sabedoria dos fabulistas, quando me lembro do diálogo entre o trabalhador e a morte narrado por La Fontaine:

Velho, caindo sob o peso de um feixe de lenha: — MORTE, morte, por que não me escutas?... Venhas logo, já não agüento mais, estou cansado...
Morte, aparecendo aterradora: — Que desejais, velho?
Velho, assustado: — Quero que me ajudes a recolocar a lenha nas costas.

Porque no fim das contas ninguém quer de verdade que tudo acabe de repente.

domingo, 10 de abril de 2011

Quixotadas

Seguindo na leitura de Don Quijote, o caráter insólito de várias personagens me chama a atenção. Há alguns fenômenos peculiares que ocorrem com elas, e isso lhes dá uma dimensão muito particular. Alguns exemplos:

- Todos que zombam de Don Quijote gostam de ridicularizá-lo tratando-o por grande cavaleiro e a Sancho por exímio escudeiro; mas, velados na sua hipocrisia, favorecem a imaginação dos dois companheiros, e assim acabam tratando-os melhor do que se simplesmente desmentissem seus credos. Há uma cena na casa de duques, em que Don Quijote e Sancho são levados a crer, de olhos vendados, numa farsa de artifícios teatrais; não desconfiando da peça que lhes é pregada, eles terminam a tarefa com grande alegria por fazê-la chegar ao bem sucedido término. Então eu questiono: o que fizeram a eles é moral? Porque no final das contas eles ficaram muito satisfeitos, e cônscios do valor de sua jornada e ação.

- Quando Don Quijote se depara com algo desconhecido ou inexplicável, começa logo a falar dos encantadores perversos que o perseguem. O que pode parecer simples fantasia é na verdade a maior das coragens: reconhecendo como verdadeiro apenas aquilo que se lhe parece como tal, Don Quijote enfrenta o desconhecido com ânimo reforçado, como a dizer: "certas coisas encantadas não posso vencer; as demais, enfrento de peito aberto e valor posto à prova".

- Os delírios de Don Quijote não me parecem ser tanto fruto de loucura, mas de uma percepção distorcida da realidade. No fim das contas, ele de fato tenta consertar os tortos do mundo e ajudar aos necessitados, mesmo que para isso corra o risco de sofrer a incompreensão do mundo que o julga anacrônico e estapafúrdio. Mas o que é mais errado, ser um cavalheiresco cavaleiro andante numa época errada ou ser injusto, vil e sórdido como todos que se divertem tratando-o como uma aberração digna de risadas?

- Sancho por vezes tem seu amo como louco, outras vezes é reputadamente tido por muitos como ainda mais fora do juízo que seu mestre. Mas para qualquer efeito ele está sempre a postos, e é injusto tratá-lo como um simplório mentecapto, quando ele demonstra crescer a cada aventura, até falando de maneira mais polida, sonhando com grandeza, trazendo a lógica humilde da vida prática a situações que são descritas de maneira tão ímpar por Cervantes que somos até gratos a Sancho por ele nos lembrar que nada é o que parece (ainda que ele mesmo acredite no contrário, por vezes, como no caso do singular encantamento de Dulcinea).

- Há que se destacar a beleza inesperada dos conselhos que Don Quijote dá a Sancho quando o fiel escudeiro está prestes a finalmente tornar-se governador de uma ilha.

Minha leitura acaba provavelmente no fim do mês. Mas tudo isso cavalgará comigo para sempre no Rocinante imortal da minha lembrança.