sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Breu e eu

Ruas desertas. Escuridão total. Não há qualquer movimento nas ruas, não existe uma pessoa ao redor. Apenas os faróis do carro iluminam a desolação da paisagem. De qualquer beco ou esquina pode pular um meliante. Não há polícia por perto, as lojas estão todas fechadas, não há para onde correr. Os postes das vias estão apagados. Por mais que se trafegue a inquietação e o medo continuam de tocaia.

Não é o início de um romance de mistério. É uma noite de carro em São Paulo. A pé deve parecer o relato de uma odisséia.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

A visita

Hoje fui com meu pai e minha mãe visitar um amigo deles que teve um derrame. Aliás, pior: teve o segundo AVC após poucos meses. E quando cheguei lá e vi o estado do homem pasmei: abatido, esvaziado como uma sacola de supermercado já usada mas sem nada dentro, de uma indefinível cor entre amarelo e verde, jogado imóvel, o desespero nos olhos embranquecidos (como seus cabelos), dificuldade para falar uma sílaba que seja, a boca caída, apagado numa poltrona perto da janela, cheio de aparelhos e tubos por perto, o enfermeiro do lado. Achei verdadeiramente lastimável e imediatamente senti um pavor incontrolável de ficar assim um dia, de ter isso também. Meu pai, ao final da visita, sorriu e disse que o amigo melhorou muito. Não quero imaginar como estava antes. Mas sei que hoje estava num estado deplorável. Pelo menos estava consciente e relativamente bom de memória e comunicação, porque o pior de tudo é vegetar. Mas não sei, talvez seja pior ficar assim, nessa zona de transição. Nem digo pela família, que obviamente se preocupa e se fragiliza muito, mas pelo convalescente mesmo. E será que ele teria forças para gritar para acabarem logo com isso?

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Espelho mágico

Às vezes me olho de frente no espelho e me acho muito bonito. Uma beleza franca, sem maquiagem e disfarce. O rosto azulado recém-escanhoado ou barbado com pequenos pontos escurecendo as feições. O nariz cuja forma muito me agrada (apesar de muito me desagradar a abundância de pêlos e cravos), as sobrancelhas grossas herança da ascendência árabe, os olhos que ninguém percebe serem castanho-esverdeados (não que isso faça diferença). A boca que pode assumir mil formas, os dentes retos e amarelados como marfim de piano.

Mas de lado sou terrivelmente feio. Um perfil nada nobre, que faz minhas sobrancelhas parecerem sombras bandidas, meus olhos escorrem e minha boca parece desproporcional. Debaixo dos olhos, riscas que aparentam cansaço, quase paralelas à curva das bochechas. O lado direito do rosto com menos barba que o esquerdo. O queixo que desce horrivelmente no pescoço, quase sem mudança. Isso sem falar no óleo que produzo igual uma baleia arpoada e nas marcas de espinha, sempre presentes. E uma cabeça enorme.

Não me admira que não atraia as mulheres.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Romantismo

Tem coisas que me deixam feliz. Uma delas é confirmar minhas anacrônicas impressões românticas. E uma delas foi ver uma entrevista sensacional com Georges Simenon feita em 1960.

O que pensar de um homem que escreveu várias centenas de textos e romances, sendo a possível maioria dedicada a ambientes e eventos eminentemente policiais? Ora, nada mais próximo do crime que o amor; portanto, Simenon era mais um esforçado artesão da palavra bela, um cultivador de prolificidade notável, e, como todo autor de literatura "barata", menosprezado e genial. Mas e o criador por trás das letras? Era tudo isso e ainda mais. Um homem encantador. Riso fácil, voz bonita e definida, cachimbo, óculos de grossos aros, olhos miúdos de quem sabe tudo e não aparenta, discurso bonito como as linhas que produzia. Romantismo encarnado. Um personagem de seus romances, sem dúvida.

A entrevista, ei-la:



P.S.: Ainda cultivo o sonho de morar numa pequena cidade da França, ao lado de um café e de uma livraria, casar com uma garota delicada, feminina e engraçada e viver de escrever contos e romances numa velha máquina de escrever.