sexta-feira, 30 de abril de 2010

Dom

Sempre me fascinou a música e seus intérpretes; quando vou a concertos, dificilmente me concentro integralmente na peça, sempre fico observando as reações dos músicos, suas hesitações, seus medos, nervosismos, movimentos. Também o maestro, misterioso feiticeiro a mexer a batuta em gestos histriônicos que parecem fazer todo o sentido para a orquestra. A perfeição de se tocar e conhecer nota por nota uma composição musical, ler partituras como quem lê uma notícia de jornal, tudo isso me intriga e comove. Tempos atrás percebi que muitas vezes escrevi sobre isso em contos, subliminar e inconscientemente, descrevendo moças violinistas, regentes, músicos amadores e todo tipo de gente desse meio.

Música é uma das mais nobres expressões de uma alma, e uma das coisas que sei que nunca serei capaz de produzir ou entender de modo satisfatório. Eu tenho um violão extraordinário, mas minha capacidade morre nas primeiras notas, a despeito de eu ter tomado aulas por tempo considerável com um professor de bastante competência. É questão de dom. Você pode treinar, mas não desenvolver o surgimento de algo que não existe.

Hoje eu comprovei isso mais uma vez, ao passar bons momentos impressionado com certos vídeos descobertos por puro acaso no YouTube, estrelando uma jovem violonista, de nome Raíssa Amaral. Essa menina nem ao menos saiu da adolescência mas tem um talento tão impactante que creio que em breve os amantes do violão não esquecerão seu nome. Pelo que consegui apurar, são vídeos caseiros (até ouvimos cachorros e pássaros de trilha de fundo, às vezes!), a garota não vive de música e é geralmente orientada por um professor (certamente também entusiasmado com sua potencialidade). Ela toca de memória peças difíceis ou não, complexas ou simples, mas sempre com paixão a cada acorde, a cada dedilhado. No canal que ela criou no site para divulgar suas interpretações é possível conferir toda a extensão de alguém que tem o dom, esse tipo de coisa que eu falei que não se adquire, mas que quando se descobre é lindo de ver. Alguns exemplos, só para constar:







É incrível observar uma pessoa exercendo sua verdadeira vocação.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Julgue um livro pela capa

Eis-me andando hoje e numa biblioteca de estação de metrô mais uma vez paro embasbacado com a incrível beleza desta capa:

As pernas nuas da moça na capa, o ângulo de inclinação de uma perna comparada à outra, a beleza das cores (o branco quase pálido da pele, o rosa da camisola, os verdes de diferentes tons que existem no colchão e na parede), o quadro com o nu disposto logo acima... E nem mesmo a marca da calcinha é de mau gosto como os "brega-detectors" adoram apontar: a roupa íntima da garota se encontra marcada mas não aparece o menor vestígio dela que não sob a camisola, o que dá uma idéia muito bonita de peso, leveza, contraste — até com a região descoberta da coxa. E o que dizer da posição em que a moça se encontra? Parece que ela está lendo, o que é mais sugestivo e bonito ainda. Enfim, uma capa perfeita, lindíssima. Tenho vontade de comprar esse livro sempre que o vejo, mas eu sou besta e quero ler Vargas Llosa em espanhol.

Mas na verdade este post é dedicado à minha decepção com as capas atualmente publicadas, sem distinção de gênero ou editora; são capas mortas, feias, padronizadas, de um gosto pavoroso. Vou colocar alguns exemplos de capas pavorosas (geralmente elas têm tons de preto, alguns brilhinhos ridículos, fontes "engraçadinhas", relevo, informações sobre números de venda etc.):

- Capa horrenda, tipo de letra absurdamente ridículo, cheio de constrangedores chamarizes (essa palavra existe?), frases de efeito, o contraste fácil entre o branco e o preto, a imagem ultraclichê de um botão de rosa, tudo um desastre total. Seria uma concorrente de peso para o posto de pior capa do ano, mas ela é tão parecida com inúmeras outras que a competição seria inútil. Mas esta ainda tem o adicional de colocar um aviso chamando crepusculetes para lerem uma obra consagrada há mais de cento e cinqüenta anos, o que é estapafúrdio e polui ainda mais essa capa nefasta.


- Não falei? Um trilhão de capas feitas da mesma maneira bisonha. Compre uma, compre todas. Costuma ocorrer o mesmo com esses livros, inclusive.


- A clássica desonestidade das editoras que consiste em lançar um livro com uma capa que remeta a uma adaptação cinematográfica que fizeram da obra; quase sempre fica horrível. E me irrita muito quando é uma imagem de um filme que desprezo, como se eu tivesse que necessariamente gostar da mesma maneira do livro e do filme.


- Eles continuam sem saber fazer capas. Parece capa de trabalho de escola, não me admiraria se me contassem que a imagem foi tirada do ClipArt.


- Informação demais. Mensagens edificantes. Fotos "de paz". Acho que podemos falar que virtualmente todas as capas de livros de auto-ajuda são tenebrosas.

Eu gosto muito das capas de literatura brasileira décadas atrás. Geralmente eram apenas desenhadas, e engenhosas, curiosas, belíssimas. Não empobreciam o livro e nem envergonhariam o leitor apanhado por acaso no metrô ou no ônibus. A seguir alguns exemplos:

- Desperta uma certa ternura pela delicada imagem feminina retrada, apreensão por sua aparente tristeza, além de ser de uma singeleza extraordinária e marcante.


- Impressiona pela "rudeza", pelo aspecto primitivo e artesanal, coisa cada vez mais rara nesse ramo hoje em dia; eu tenho essa edição e as ilustrações internas do Poty também são muito sugestivas e impactantes, algo que só vemos agora em quadros de arte naïf (e em literatura de cordel).


- Capa interessante e muito engraçada, já dando o tom das crônicas e contos que o Sabino escreveu. É limpa e chamativa, um exemplo brilhante de comunicação eficaz.


- Cria suspense, não só pela chamada acerca da "maior reinação do mundo", mas pelo inusitado da situação, Emília vestida apenas com uma saia esquisita (que depois descobriríamos ser de algodão), criança nua chorando, animais... O que se passa aqui é aquela sensação de curiosidade, que remete a um inevitável: "O que aconteceu?!".

Não me envergonho de falar: a capa pode me despertar o interesse por um livro, mas o contrário é o que ocorre cada vez com mais freqüência.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Cahiers

Eu evito falar de cinema aqui, por várias razões: primeiro porque já falo suficientemente de cinema em comunidades virtuais (então aqui é o espaço para falar de literatura, música, quadrinhos, da vida etc.); segundo porque escrevo regularmente para a revista Zingu!, publicação voltada ao cinema brasileiro mas que eu sempre corrompo com minhas observações nada pertinentes sobre cinema europeu e polêmicas vazias. Mas hoje resolvi publicar neste blogue uma pendência antiga com mim mesmo: a entrevista que fiz com Carlos Reichenbach. Naturalmente a entrevista não foi apenas minha, mas transcreverei apenas a minha breve participação (que foi justamente na parte final); a entrevista "oficial" e o dossiê sobre o Carlão saíram em uma das últimas edições da Zingu!, mas não me agradou a edição do bate-papo — a meu ver desnecessariamente impiedosa —, e afinal de contas o que mais gosto em entrevistas é a espontaneidade, o caráter de resposta-pronta, interatividade: o trecho a seguir tem tudo isso, e ainda pensarei em depois disponibilizar o áudio desse encontro. Não quero com isso qualquer tipo de auto-promoção, até porque nunca ganhei tostão algum escrevendo o que seja — quero apenas disponibilizar essa trabalhosa transcrição; sem mais delongas, eis o mais longo post da história deste blogue:

Gabriel [Carneiro, editor da Zingu!]: Vamos encerrar? Mais alguma pergunta?

Filipe: [Para Reichenbach] Só queria perguntar quais diretores você despreza, os “tapeceiros”... Eu sei que você não gosta do Michael Haneke, queria saber outros cineastas de que você não gosta.

Reichenbach: Haneke é nazista, só isso.

Filipe: Nazista? [Ri]

Reichenbach: Não gosto do Wong Kar-Wai, por exemplo.

Gabriel: Ah, Kar-Wai é muito bom!

Reichenbach: Bom? Bom pra quem?

Gabriel: Ah, o 2046 é maravilhoso, Carlão!

Reichenbach: Você está louco. Eu não suporto esse cara. Gosto é gosto!

Filipe: Eu também queria perguntar se o Cronenberg se ajusta nessa definição que você falou de “mostrar um filme sobre a violência, mas não compactuar com ela”; porque os filmes do Cronenberg são muito violentos, mas para mim é claro o posicionamento de que ele é um pacifista.

Reichenbach: A diferença dos filmes do Cronenberg, o que torna ele um dos maiores – a meu ver talvez um dos três grandes em atividade (indiscutivelmente há três grandes cineastas), não importa o primeiro dia no cinema, o dia em que entrar filme do cidadão... [Nota: aqui, Reichenbach quis dizer que não importa o dia da estréia dos filmes desses diretores, ele estará lá.] Martin Scorsese, Cronenberg e Brian De Palma. Mesmo quando erram – e erram pra valer [rindo] – são de tirar o chapéu, deixa eles errarem, vão acertar na próxima. O que marca o Cronenberg é que ele cria um universo e uma geografia muito pessoais, e se você levar à risca, ele cria uma metáfora. Não acho que ele faça filmes sobre violência. Sabe que eu fui o primeiro brasileiro que entrevistou o Cronenberg? Pra Folha de São Paulo, pro Folhateen. O primeiro, e a porra da editoria me bota um título lá que me deu uma raiva desgraçada: “O mestre do nojo”. Porque era a época de A mosca.

Filipe: O mestre do nojo é o Sady Baby [ri].

Reichenbach: Enfim, fui o primeiro que assumiu que gostava desse cara. E quando eu estava na Holanda, teve homenagem a ele, e eu vi tudo, Stereo, aqueles primeiros filmes... E eu levantei isso no debate, que eu acho que ele faz filmes sobre dor. O grande tema dele não é a violência, mas a dor.

Filipe: Mas é que também a dor física, e aí nisso vai um pouco da própria violência. [Reichenbach: Ah, sim, claro!] Principalmente nos filmes mais recentes dele, que o pessoal diz que são mais “limpos”, e eu não acho que são limpos, mas de qualquer modo... É porque eles vêem a superfície, e eu acho que o seu cinema também tem muito disso, uma coisa meio Claude Chabrol, ele pega o exterior da coisa, digamos, o Hitchcock, e o interior, que é o Fritz Lang. E o pessoal diz: “não, porque são filmes limpinhos, agora não tem gore e não sei que mais”, e eu não concordo com isso. Eu queria saber o que exatamente isso tem, se é uma coisa ocasional, sai por acaso, esse tipo de estética mais “interna”, não sei se é proposital...

Reichenbach: Quem definiu ele bem foi o Martin Scorsese, que falou que ficou muito impressionado com um daqueles primeiros filmes do Cronenberg, não me lembro qual, acho que foi com o filme que ele fez com a Marilyn Chambers [Nota: O filme é Rabid – Enraivescida na fúria do sexo], que é sensacional, por sinal. Aí convidou o Cronenberg pra casa dele, disse que gostaria muito de encontrá-lo, ficou entusiasmado. Quando abriu a porta, disse que pensou que ali havia uma pessoa que tinha se enganado de endereço, parecia um médico obstetra, um cara de paletó e gravata, de óculos [ri]! Eu fui num jantar, foi no ano em que fui acompanhando a produção de um filme estrangeiro chamado City life, co-produção com a Holanda e tudo; aí teve uma hora que todo mundo foi jantar num restaurante indiano, onde servem um prato coletivo, todo mundo em volta de uma mesa, um monte de pratinhos de arroz com um monte de coisinhas diferentes, e fica aquela coisa rodando, e você pega do prato de um, de outro... O Cronenberg foi para uma outra mesa comer separado, ele não conseguia misturar! O cara é muito louco. Ele não podia conceber pegar com o garfo dele a comida que você tinha botado no seu prato. Aí a gente estranha, o cara faz aqueles puta filmes nojentos... [ri]

Filipe: A gente pensa que o cara é o total pirado, mas na verdade é um sujeito certinho, tranqüilo...

Reichenbach: Parecia um médico obstetra! [rindo]

Filipe: É verdade, e inclusive ele fez um, em A mosca ele era o ginecologista da Geena Davis.

Reichenbach: Mas na hora de botar os demônios pra fora, ele bota! No fundo, os últimos filmes dele são mais wellesianos. O Welles dizia: “não consigo separar política do crime”. É o vértice mais wellesiano do cinema do Cronenberg. São mais políticos esses filmes, o crime é quase um partido, uma organização, uma estrutura quase hierárquica. Isso é o que é fascinante nesses filmes. Aqueles planos estranhos, A marca da maldade, aquele abertura, atravessa uma fronteira inteira, vai explodir um carro lá na frente... Deu pra sentir essa coisa de lentes deformatórias, sobretudo as bifocais – o De Palma é o grande mestre em usar isso, ele bota o cara em primeiro plano e tem outro lá atrás em foco, como tinha em Cidadão Kane... Por conta de preparar a minha “cinemateca”, vou ter que comprar outro HD, cada vez tem menos espaço, já tive que apagar uma pasta inteira de mais de setenta filmes para poder abrir espaço para tantos filmes, porque o intuito é de continuar mantendo esse material de pesquisa na mão, porque se algum dia me torna viável fazer o Cinema interditado... Só concluindo a história, depois de quatro anos e meio, o produtor chegou à conclusão: “Olha, vamos fazer as contas”, e acertou com um cara a compra dos direitos autorais. Essa série de filmes envolvia [ininteligível] Castro, Maomé, até filmes mais ardidos mesmo, filmes do Joseph [ininteligível], primeiro filme onde tem DP dupla – o que é um contrasenso, Dupla Penetração dupla –, as câmeras de tabus, de repente tinha que comprar um filme alemão horroroso, mas tinha que ter, senão ia ficar faltando. E é duro você trabalhar num material onde você deixa de falar alguma coisa por uma questão de censura, não pode ter censura. Todas as aberrações que o cinema já aprofundou, ou que existem, ou que tem uma ramificação lá dentro que é dedicada isso, eu fui obrigado a tratar. Vi cada coisa que você não imagina. Sabia que tinha aberrações de zoofilia, necrofilia, mas algumas coisas eu pensava como o ser humano pode chegar a esse ponto, atração à merda... São coisas que a gente só sabia no Teatro da Agressão, no material, claro, do Otto Mülh, que trabalhava isso de forma ritualística. Sabe quem é Otto Mühl?

Filipe: Só de nome.

Reichenbach: Nunca viu? [Filipe: Não, nunca vi.] Pois é, tem que ver! E isso você baixa de graça, inclusive pode ver no Museu Otto Mülh, são filmes de três, quatro minutos, fácil, rápido. Você viu Sweet movie?

Filipe: Do Makavejev? Vi.

Reichenbach: Nesse filme eles não levam a moça lá pra morar numa comunidade, que fica cagando no meio de um negócio lá?... É Otto Mülh! É a comunidade do Otto Mülh!

Filipe: É daquele jeito? É que eu tenho uma relação meio de amor e ódio com o Sweet movie, então...

Reichenbach: Mas é maravilhoso! Esse obviamente está no meu arquivo.

Filipe: Na seção de honra...

Reichenbach: De honra, esse filme é um exercício de liberdade. Especialmente as conseqüências, quem viu não acreditou, é um festim. [Filipe: É uma entrega.] Quando ele vai morar na comunidade do Otto Mülh, é um festim aquilo, você lembra dessa seqüência? [Filipe: Lembro.] Uma das cenas mais interessantes e mais bonitas que eu já vi, o desespero da mulher.

Filipe: É, o que eu penso do Cronenberg é meio o que acontece com o próprio Makavejev, que fazia um cinema mais “libertário” e só passou a ser mais aceito, referenciado em revistas e tudo, quando passou a adotar um padrão estético mais “comportado”, como aquele The Coca-Cola kid. O próprio Cronenberg sempre foi um sujeito muito sério e centrado, mas ninguém levava a sério, porque tinha esse tipo de coisa...

Reichenbach: Mas o Makavejev não foi descoberto aí, ele foi descoberto nos primeiros filmes.

Filipe: É verdade, eu tenho uma Cahiers du Cinéma bem antiga sobre ele.

Reichenbach: Um caso de amor, por exemplo, que é uma obra-prima.

Filipe: Mas o estilo mais famoso dele...

Reichenbach: É que ele acabou na verdade tentando fazer uma carreira internacional também, e fez um filme até com muito sucesso, Montenegro, que é um filme libertário, mas é um filme policial.

Filipe: O que eu penso é que o próprio cinema brasileiro sofre um pouco dessa incompreensão, está cheio de gente para quem eu indiquei Falsa loura que diz: “Ah! Filme com Maurício Mattar e Cauã Reymond? Nem vou ver!” E não vêem.

Reichenbach: É o preconceito contra o filme popular.

Filipe: O preconceito que nasce de fora do filme, não de dentro, isso que eu acho engraçado.

Reichenbach: Vou te contar, originalmente, a primeira opção minha, desde o começo, desde o início, quando imaginei fazer esse filme, sabe quem era, para ser o ator? Antes da atriz, antes de qualquer coisa, sabe quem era?

Filipe: Maurício Mattar?

Reichenbach: Não! [Filipe: Quem?] O primeiro ator que me veio à cabeça, eu quis fazer o filme com ele, encontrei dez pessoas que me falaram: “Não faça isso, você é louco, você não vai conseguir, o cara dá problema, o cara é problemático...” E eu: “Você não está entendendo, esse cara é o novo Marlon Brando!” O cara acabou de ganhar um milhão de reais...

Filipe: Dado Dolabella? [Reichenbach: Dado Dolabella.] Caramba!

Reichenbach: É o primeiro ator que eu queria de qualquer jeito para fazer esse filme. [Filipe: No papel que ficou com o Cauã Reymond.] Pois é! Porque ele canta, inclusive. Falei: “Já está feito!” Ele é o novo Marlon Brando! Você pode não gostar, mas ele é o novo Marlon Brando, indiscutivelmente. Que pena não ter feito o filme com o cara [ri], ele está com a popularidade lá na casa do cacete! Falaram: “Vou te criar problemas”, entendeu? A mulher que era produtora de elenco – estou te contando entre irmãos, hein? Não vou dar nomes agora, hein. [Filipe: Não vamos publicar isso! (ri)] Pessoas me falaram: “Não bota esse cara, ele vai dar problema pra chegar até o fim, o cara vai sumir, vai fazer baile de debutante e te largar na mão”. Porque foi a primeira pessoa que quis chamar pra fazer, tem que ser um ídolo, com cara de mau, jeito de badboy, não tinha ninguém melhor. Como tipologia, eu digo.

Filipe: Mas você chegou a convidá-lo?

Reichenbach: Não, não deixaram eu chegar! Disseram que era tão problemático que não dava. Ele é essa imagem do Nicholas Ray, Juventude transviada, seria perfeito não tem nem o que fazer! É só fazer o cara aprender a música e fazer o cara aparecer lá como ídolo! Você esbarra às vezes no próprio convívio. Quando eu fui chamar o Cauã, ouvi muitos “Você está louco!”. A primeira coisa que ouvi sobre o Cauã foi uma coisa horrorosa, uma baita mentira, na verdade. [Filipe: O que era?] Diziam que era o nariz mais caro do Rio de Janeiro. As razões são óbvias. Mas o cara nem chega perto disso! Se ouvir tudo o que falam... O grande prazer é quebrar esses tabus. É um prazer enorme. Eu e a minha produtora de elenco gostamos de brincar com isso, falei: “Vamos chamar a Suzana Alves pra fazer o teste”, e ela: “Pode chamar! Vai fazer o teste!”. Porque quando fiz Garotas do ABC, minha produtora de elenco já a tinha me indicado, aí várias pessoas falaram que não iriam levar a sério. Mas é uma grande atriz, trabalha com o grupo do Antunes Filho... Essa barreira do preconceito é uma coisa pavorosa, mas o prazer é quebrar essa barreira. No Filme demência resolvi pegar uma jurada do Silvio Santos. [Filipe: A Flor] E falei para ela que a personagem dela era uma homenagem à Dercy Gonçalves do início da carreira. E ela fez magnificamente, e me ajudou pra cacete, ela conseguiu botar duzentas pessoas caladas. Aliás, duas mil pessoas, fomos filmar em Osasco, você pode imaginar o que é filmar em Osasco de noite em um bar com as portas completamente abertas. No primeiro dia tinha trinta pessoas, no segundo, cento e cinqüenta, no terceiro, duas mil pessoas que não calavam a boca. Já tinha que gravar um cara tocando piano com um halterofilista fazendo evolução lá na frente [rindo], quem conseguiu calar essas duas mil pessoas? Ela: “Meus queridos, façam silêncio, o maestro vai tocar”. Ela conseguiu fazer duas mil pessoas ficarem quietas! Depois pediram e ela deu autógrafo pra todo mundo. Ela salvou minha vida ali! [Rindo] Foi a filmagem mais emocionante que já vi na vida, porque você pode imaginar o que duas mil pessoas falaram com o halterofilista lá na porta. [Ri de novo] O cara era Mister Universo. E ela lá: “Querido, querido...” Na hora de filmar o maestro, foi inacreditável, o maestro parecia um estivador, parecia que ia levar o piano embora, aí senta e toca como uma menina, uma exímia pianista, a delicadeza de uma mulher, e ele tinha uma mão mais grossa que a minha! A idéia era essa, achar o sublime onde você menos espera. O sujeito fazendo evoluções junto com a música de Debussy, uma coisa completamente estapafúrdia... Na hora de rodar, um silêncio tumular, e o homem começou a tocar. Na época a gente tinha que rodar o plano inteiro porque ia tocar a música toda. Tinha duas câmeras montadas, depois iam fazer os corte, as inserções. E a gente rezando: “Pelo amor de Deus, que ninguém grite, que ninguém toque a buzina...”. Tinha som direto, mas uma câmera só que não fazia barulho, não podia passar um caminhão, um ônibus, já tinha gente segurando os ônibus que passavam, sempre tem um idiota que vai tocar buzina, e a gente ficava rezando: “Tem que dar! Tem que dar! Não pode ter barulho”. Silêncio lá fora. Quando o maestro começou a tocar, eu mal consegui vê-lo. Só o maestro tocando, duas mil pessoas paradas na rua, num bar de esquina. Você dá um “Corta!”, ele não escuta. Estava todo mundo extasiado vendo. Desliguei a câmera, estava emocionado, duas mil pessoas lá dentro. Aquele povo inteiro de Osasco aplaudindo e o maestro tocando. Tinha gente que acho que nunca tinha ouvido Clair de la lune do Debussy na vida!...

Filipe: Não naquelas condições, pelo menos.

Reichenbach: Aquele homem enorme, imenso, lá dentro, parecia um urso [ri], tocando com a delicadeza de uma menina! Uma coisa absolutamente emocionante. Aí me perguntaram como nasceu isso. Um ano atrás eu tinha assistido a um show de vanguarda e lá aconteceu exatamente essa sensação, era um evento chamado Festival de Música Nova e realmente tinha um piano de cauda lá, tocavam nele uma música brega, barulhenta, e entra ele [esse personagem de Alma corsária]. Eu te juro que pensei que fosse um funcionário da casa, que ia tirar o piano para colocar outro instrumento! [Ri] O cara senta e toca Debussy! Eu tinha que usar isso, nunca vi delicadeza tão grande. Mas no filme a gente botou o cara como estivador, suado, pra não passar pela cabeça que o homem iria sentar no banco e transformar aquilo num momento de magia. Mas na hora da filmagem, duas mil pessoas aplaudindo o maestro espontaneamente! Se isso aconteceu, a seqüência está ganha. A gente sentiu na hora que era a seqüência-chave do filme. A platéia não vai levantar antes do maestro. No final da seqüência entendemos que o filme iria ganhar. E transmitir isso é legal, quebrar preconceitos, o jogo também foi esse. A existência dessa seqüência foi um pouco por esse caminho.

Filipe: E fazer um filme bom é uma recompensa por essa busca.

Reichenbach: Ah, sim. O problema nem é fazer um filme bom, mas procurar pelo menos meia dúzia de pessoas que entendam o que está na tela! O grande retorno que você tem é encontrar o interlucutor onde você menos espera, seja aqui, na Conchinchina... Uma vez fizeram uma retrospectiva numa cidade parecida com São Bernardo, passaram Dois córregos numa sessão especialmente para alunas de cinco escolas públicas. Todas meninas com idades das protagonistas do filme, o mais belo debate de que já participei na vida, acho que o filme foi feito sobre elas, elas entendiam coisas que o espectador no Brasil não entende. É a intimidade, você lida com os sentimentos etc. O retorno maior é achar essa interlocução onde você menos espera. E acho interessante que se discuta sobre o que, num determinado momento, torna um filme maior ou menor. Como o filme pode ser devidamente compreendido, valorizado, a partir do momento em que você vence as suas limitações de tolerância. Às vezes me pergunto por que gosto de um filme; por que gosto do Joe D’Amato? Nem vou me aprofundar nessa questão, eu gosto do Joe D’Amato como gosto do Oswaldo de Oliveira! Da mesma forma. Pode ser um dos caras que entendem de cinema profundamente, aprendido na vida, na prática do cinema. Bonito um documentário do Gallante em que ele diz que, sobre Oswaldo de Oliveira, que conheceu “pouca gente que entendesse tanto de cinema”. E é verdade. Era um cara que não aprendeu a linguagem cinematográfica nos livros, foi na prática do dia-a-dia. O Joe D’Amato foi a mesma coisa, também foi fotógrafo, era um homem mais “tosco”. Nas entrevistas sobre ele, os atores falavam que não gostavam dele, não sabiam que filme iriam fazer, mas que iam trabalhar com ele pelo prazer de filmar com ele, as pessoas se sentiam muito bem de trabalhar com ele, ele era de bem com a vida. A Laura Gemser quando resolveu parar de fazer cinema, deixou de ser atriz para ser figurinista do Joe D’Amato, ela poderia fazer o que quisesse, virou uma mulher mítica, até tinha aquela brincadeira, ex-Miss Java [“mijava”], é verdade, ela foi Miss Java. Dizia que o D’Amato era um homem que conhecia cinema profundamente e uma pessoa muito prazerosa de se trabalhar com, o tempo inteiro se divertindo, ela não queria mais ser atriz mas gostava de figurinos, e pediu a ele para ser sua figurinista. Foi figurinista dele em mais de dez filmes. [Incompreensível] Todo mundo gosta! Sempre digo que é o melhor filme péssimo que já vi. Mas não se leva a sério. O D’Amato não se pode levar a sério. É um filme tosco, muito bem filmado, em alguns momentos lembra inclusive A ilha dos prazeres proibidos, tem uns planos de carros passando pela cidade, muito engraçado. Mas você percebe que existe um alto astral, não pode ser babaca e falar: “ah, que história boba”, você tem que se divertir! Eu ria pra cacete com os filmes do Mojica, adorava, me dava muito prazer de ver. Aí você entende por que o cara é capaz do melhor e do pior. Que nem Jesus Franco, o caso mais notável que já conheci, o homem que mais fez filmes no mundo, um dos, acho que o D’Amato acho que fez mais. Mas o Franco fez mais de trezentos e tantos filmes, ele fazia três filmes ao mesmo tempo. Um dia você tem que entrevistar um cineasta português que mora no Rio Grande do Sul, estou cobrando, vale a pena, ele foi assistente do Jesus Franco. Eu descobri isso sem querer, ele escondia, mas aí eu fui conversar com ele e ele abriu o jogo. Um dia que você for pro Festival de Gramado... Ele é um português que fez dois longas-metragens, um dele se chama O homem que deve morrer, interessantíssimo, ele foi amigo pessoal e assistente do Nelson Pereira dos Santos em Memórias do cárcere. Ele foi assistente do Jesus Franco, o homem que mais filmes fez na face da Terra. Trezentos e sessenta filmes, ou o que seja: trezentas e cinqüenta merdas, dez obras-primas. Quem fez trezentos e sessenta filmes pode muito bem ter feito trezentos e cinqüenta merdas, mas pelo menos umas cinco ou seis obras-primas, como bem diz o Albornoz, e inclusive um filme que hoje já é mesmo um clássico do cinema, Vampyros lesbos. Ele tem fãs incondicionais, no mundo todo, tem sites e blogs dedicados a ele, gente apaixonada. Obviamente também estaria no Cinema interditado. Ele fazia aqueles filmes sobre sexo mesmo como resposta à ditadura do Franco, a briga dele era com o Franco, o ditador.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Sozinho

Algumas coisas de que todos gostam, menos eu:

Praia
Lugar quente, abafado e cheio como o inferno. Águas podres e muita, muita sujeira e mau cheiro. Some-se a isso gente feia, mal educada e muito barulho e música chata; tirando a parte líquida, parece a descrição do metrô de São Paulo. Como alguém se diverte assim?

Juliana Paes
O "símbolo sexual" mais feio de todos os tempos. Rosto macabro, horrível, deprimente; talento de uma pulga; e não sei quem disse que ter um traseiro animalesco desproporcional faz da mulher um objeto de desejo instantâneo.

Festas
Não bebo, não fumo, não uso drogas, não me socializo (?) facilmente e sou tímido pra burro, então não há nada nesses lugares que interesse a alguém como eu; e ainda há a questão das trilhas sonoras, sempre pérolas da irritação.

Alan Moore
OK, não li Watchmen ainda, e não liguei muito para o que li de A liga extraordinária. Mas odiei V de vingança do fundo da minha alma, com todas as minhas forças. E esse quadrinho é considerado um dos mais geniais do homem.

Pizza
Não preciso me esforçar muito para não ser a única pessoa no mundo que não é apaixonada por pizza: como um alimento à base de tomate e azeitona pode ser tão popular e querido por todos?

Faculdade
Bem, isso não é segredo para quem lê este blogue. Os cinco anos de faculdade que levaram uns bons vinte da minha vida, e foi lá onde conheci as pessoas mais execráveis que imaginei encontrar pela frente.

Pipoca no cinema
Argh. Fedem, fazem barulho, atrapalham e enlouquecem qualquer um que vá ao cinema para ver o bendito filme que está sendo exibido. Não sei por que fizeram isso com o cinema, ninguém diz que em concertos de jazz você deve mascar ovinhos de amendoim.

domingo, 25 de abril de 2010

Cena política

Política. Assunto que de repente apaixona todo mundo em ano eleitoral. Blogues esquerdistas louvam a Dilma, revistas direitistas colocam auréola no Serra. Mas aqui não haverá nada disso. Para mim, a política institucionalizada não existe. Ela não funciona. Ela não me diz respeito.

Eu postei dias atrás uma entrevista do Fernando Sabino em que a certo ponto ele diz mais ou menos o que François Truffaut sempre dizia (e eu concordo): que é ridículo celebrizar políticos, que homens públicos deveriam se limitar a fazer seu trabalho de bico calado, como uma dona de casa colocando ordem no poleiro sem esperar ser reconhecida por isso — apenas porque é seu trabalho. O que ocorre é que os administradores da vida política querem holofotes, confetes, purpurinas, elogios, glórias. Que não merecem de maneira alguma.

Deve ser minha terceira ou quarta eleição, e novamente anularei meu voto. Não sou anarquista como minha irmã acredita, simplesmente não acredito na democracia política e não me interesso por esse assunto, não pesquiso perfis e propostas de candidatos, não cobro posicionamentos dos eleitos e tampouco me dou o trabalho de achar que meu inconformismo adiantaria de algo, num mundo e num tempo em que o poder está mais arbitrário que nunca, disfarçado de representatividade.

Eu simplesmente acho que as pessoas devem viver, trabalhar e prosperar sem esperar qualquer atenção dos entes públicos, salvo casos de problemas a serem resolvidos burocraticamente ou algo do tipo; não deveríamos nos importar com política e nem esperar qualquer "controle", "fiscalização" ou mesmo "punição" de uma gente que nunca conheceremos e que dificilmente se mexe para fazer algo pelos outros.

Como se pode votar numa eleição dos melhores discos do Jethro Tull sem ter ouvido os discos do Jethro Tull? O princípio é o mesmo. Não sei quem são os políticos, e tampouco me interessa; anulo meus votos para fingir que não fui obrigado a participar.

O que mais vejo é gente se desiludindo tempos depois com seu candidato votado. Eu evito essa dor de cabeça, pois só me preocupo com o que é importante para mim. A política deixo para as comadres de ocasião se matarem.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Mundo cão

Duas coisas que me deixaram triste esta semana:

1) Não ver estrelas - Depois de reler Viagem ao céu percebi que nunca vi muitas estrelas na vida, e ao correr à janela ontem à noite pude descobrir por quê. No céu poluído não se vê nada que não um grande e feio breu! Com muito esforço consegui divisar uma meia dúzia de astros, um dos quais, segundo meu pai, deve ser precisamente o avermelhado planeta Marte. É um espetáculo lindo, e após acostumar os olhos com a escuridão dá para contar nos dedos as pequeninas estrelas brilhando há sei lá quantos milhões de anos-luz de distância (falando nisso, ontem calculei quanto são quinhentos milhões de anos-luz em quilômetros, para saber quanto tempo me separava do fim de uma aula incrivelmente chata).

2) Querer trabalhar no feriado - Ouvi muitos relatos de gente que se chateia em feriados, porque não gosta de ficar sem serviço. Ah, essa não! Que vão dormir, ler, fazer sexo, andar a esmo nas ruas, abraçar cachorro sem dono, qualquer coisa, mas como assim se deprimir por não ter de trabalhar? Que terrível sinal do estágio preocupante a que essa maldita geração whorkaholic chegou. Viver sem obrigações e de consciência limpa é a melhor coisa que existe. Um dia de folga não mata ninguém, ao contrário de um dia de trabalho.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Um mundo ideal

Eu gosto muito de contos de fadas, de fábulas, de narrativas mitológicas, lendas etc. Nada mais natural então que me imaginar em várias dessas situações, até para escapar do sufocante cotidiano. Então apresentarei a seguir os meus três pedidos que formularia ao gênio da lâmpada maravilhosa; não quis dar uma de demagogo e pedir a paz no mundo, o gênio concederia três desejos PARA MIM, oras. São os meus três principais (de muitos) problemas, os que mais queria extirpar da minha vida, e claro que sempre penso na melhor maneira de produzir uma frase que não levasse a excessos do gênio e nem a abusos, enganos ou inconveniências de qualquer tipo. Sem ordem de preferência interna, eis o que eu pediria:

1. Só ter sono quando eu quisesse dormir
Meu sono indomável é um problema medonho que me entristece muitíssimo e me desanima enormemente. Não sei a causa dele, se o hipotireoidismo escangalha com ele, se são hormônios ou sei lá quê. Só sei que isso me atrapalha bastante, depois de uma certa hora eu pifo, e, não importa se durmo pouco ou muito, se acordo cedo ou tarde, sempre estarei com muito sono durante todo o dia, e às vezes não consigo me controlar e desabo no meio de uma aula, de um filme, fico sem ânimo, sem paciência, a produtividade cai, temo pelo meu futuro de velho (se, jovem, já tenho esse sono de idoso), as minhas pálpebras sempre estão inchadas e os olhos embaçados de sono... Essa frase dita ao gênio não permite equívocos; não pediria para não sentir mais sono, mas para só o ter quando eu de fato quisesse me repousar, o que seria muito cômodo e eficaz.

2. Deixar de ser tímido
Nessa o gênio poderia querer sacanear, mas eu não disse "quero ser malandrão" ou algo do tipo, e só que NÃO quero mais ser tímido. De quantas garotas deixei de me aproximar por essa razão, quantas outras me ignoraram por isso (acho que a soma não chega a uma, hein!), quantas vezes suei frio por ter de falar em público ou ao ser injustamente interpelado na frente de todos (como no lamentável acontecimento aqui ontem parcialmente relatado)? Não tenho timidez de pedir algum produto para uma moça que atenda numa loja, mas às vezes me acho quase patológico quando finjo não ver um ex-colega de escola com vergonha por ele talvez não me reconhecer, ou não puxo papo com aquela garota que me parece interessante apenas porque eu sei que ela encararia o nervosismo e a hesitação como fraquezas inadmissíveis e vergonhosas (já que as mulheres só gostam dos tímidos na ficção). Eu odeio ficar escondendo esse tipo de coisa, e ver as oportunidades todas irem ralo abaixo porque sou tímido (iniciativa feminina é lenda). O gênio teria que se compadecer.

3. Ter sucesso em qualquer carreira profissional que eu escolher
Sim, a gente sabe que no Brasil escrever/filmar/desenhar/pintar/traduzir/etc. não sustenta, mas fazer o quê quando essas coisas são as únicas que te dão prazer? Queria pelo menos ter a possibilidade de tentar algo, nem que outras profissões, mas que fazer quando você precisa se sustentar e percebe que não dá pra trabalhar com nada de que você gosta? A não ser que dê uma sorte incrível ou se contente com migalhas, a solução para esse grande problema contemporâneo é voltar aos tempos em que o trabalho é só um meio para conseguir fazer as coisas que você gosta e que te completam. Porque trabalhar com direito é desesperador, além de ser uma carreira tão injusta quanto a própria vida é o caminho mais insuportavelmente chato e maçante e desesperador que alguém pode trilhar. Não nasci rico e nem tenho qualquer talento que me dê dinheiro, então só me sobraria fazer esse apelo ao gênio.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Adevogados

Hoje um professor estúpido estava com vontade de brigar e me pegou para Cristo. Era dia de vista de prova, e o cidadão inventou de corrigir o teste igual ao nariz dele. E como todo idiota que se acha investido de autoridade, a discordância de seus métodos de mau-caráter só geram mais polêmica, e daí para o cretino começar a gritar nervoso foi um pulo. Ele achou que eu compraria a briga e inclusive colocou a classe contra mim, mas o que posso fazer, discutir com uma anta batizada? Ao que eu saiba, a esse espécime animal não foi conferida a capacidade de raciocínio, quanto mais de debate. E some-se a isso alunos prostituídos vendendo-se ao professor e concordando com cada vírgula cuspida, tendo orgasmos a cada frase de efeito e fuzilando-me com olhares de ódio por simplesmente me defender das flechas envenenadas atiradas contra mim. O debilóide que se acha um grande expoente da didática obriga os alunos a pensarem que nem ele, a concordarem com suas opiniões estapafúrdias e a nunca o questionarem, pois qualquer diferença gera atritos violentos e ele toma o tempo da aula para humilhar e vexar suas vítimas escolhidas. Ele não é um ditador, porque seu poder é minúsculo; mas ele se sente como se o fosse, e sua arrogância é ainda mais execrável quando ele adiciona ao seu discurso de crápula a falsidade do discurso ideológico, a mentira da democracia, a alegada rejeição da arbitrariedade que na verdade é uma capa encobrindo seus vícios e podridões. Um lixo em forma humana, esse professor.

Fui marcado, evidentemente. Mas não me importo; o que me desaponta é não poder fazer uma reclamação formal ao egrégio chefão da instituição, pois já tive outros atritos com professores bandidos e o salafrário que se senta na cadeira de manda-chuva não se digna a ler os requerimentos que lhe são enviados, mandando um dos cupinchas de sua gangue assinar uma negativa sempre muito mal explicada.

Eu me envergonho de ir todo dia àquele lugar.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Macaquinhos no sótão

Os meus anos mais felizes foram 2000 e 2001. Eu sei bem e nunca mais os esquecerei. Já tinha plena consciência de sua importância na época, mas não sabia que eles nunca seriam superados — sequer alcançados. Os meus dois últimos anos na minha ex-escola favorita não tiveram nenhuma viagem internacional ou um amor que me marcou para a vida toda; não, a relevância desses dois anos está em seus pequenos momentos triviais. Eu lia muito, sem perder a atenção e a paixão voraz, eu não tinha sono, eu gostava das aulas, do colégio, até mesmo dos professores!, eu adorava não falar nada com nada no recreio — hoje as conversas devem todas ter "assunto" —, meus irmãos já não estavam na mesma instituição que eu e eu me sentia mais solto — "dono do pedaço" —, eu era alegre, comunicativo, sociável, não pensava no futuro, não tinha problemas sentimentais, afetivos ou psicológicos, não me sentia velho como hoje me sinto, cansado, desanimado, eu me sentia vivendo (não apenas existindo, como me sinto hoje), eu adorava passear pelas poucas ruas e ambientes que conhecia, eu não sentia o tédio me corroendo, eu gostava de viver pelas surpresas que imaginava ter no dia seguinte, eu gostava de usar o uniforme da escola e ficar com ele o dia inteiro, eu imaginava que estava no caminho certo (o total contrário do que penso hoje), eu acreditava ter amigos, eu não tinha raiva das coisas.

Eu não era um menino maluquinho, eu era um menino feliz.

P.S.: A respeito do título deste post, eu acho engraçado quando me lembro que perguntei pessoalmente ao Ziraldo o que quer dizer essa expressão.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Falta algo

Há algumas semanas venho me sentindo de uma maneira que não sei explicar; parece uma permanente sensação de déjà vu, como se eu fosse eu mesmo no meu corpo de anos atrás, cabeça mais jovem mas com as mesmas lembranças e pensamentos de hoje. Como se eu me sentisse transportado para algum tempo atrás, sentindo falta de algo que deve ter ficado. Talvez seja o clima cinzento (que a tudo deixa mais bonito), o eminente fim das abomináveis aulas universitárias (e daí a sensação que senti cinco anos atrás, quando estava para entrar nesse buraco), ou alguma outra coisa que eu não sei bem o que é mas que me deixa de um jeito esquisito, como numa expectativa e numa frustração sempre; sei que com certeza já senti isso antes, mas não sei o que possa ser. O mais provável é mesmo saudosismo, porque é mais uma época da minha vida que se vai, com esses cinco anos passados a ferro, fogo e dissabores na horripilante universidade que freqüento; quando pego um livro (de ficção, naturalmente) e sinto seu cheiro ao folhear as páginas (um passatempo sem o qual não consigo viver, e uma das razões por que detesto livros virtuais), imagino-me em outro período, já concluído ou não, de minha vida — meu olfato bate fundo nas memórias que acumulei ao longo da vida, como se para cada coisa importante que me aconteceu eu tivesse um odor que acionasse recordações, um cheiro que dissesse respeito particularmente a um momento da minha existência. O que estou sentido, pode muito bem ser isso. Mas não confio. Parece algo bem mais irracional e forte que um ataque de saudosite...

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Encontro marcado

Uma das coisas que mais gosto são entrevistas com pessoas que praticam o que eu sempre quis praticar: escrevem, filmam, desenham, atuam, traduzem, compõem etc. Já comentei aqui que quando o assunto me interessa acabo lendo até relatos de gente de que nunca tinha ouvido falar, como aquela insuportável professora universitária de literatura que citei umas semanas atrás; mas quando é de alguém que gosto, o prazer dobra: observar a estrutura de seus pensamentos narrados oralmente, suas idéias organizadas quase instantaneamente ao falar, o gosto da pessoa por sua profissão, o tipo de humor, a reação a perguntas e a contrariedades, tudo isso me fascina enormemente.

Sim, isso foi uma introdução para OUTRA entrevista de um escritor que admiro que postarei aqui; é a hora e vez de Fernando Sabino, num garimpo impressionante da íntegra do programa Roda Viva (o melhor programa de entrevistas na televisão brasileira, evidentemente) exibido em 1989: aqui o vídeo.

Uma hora e meia de uma descontração que nunca encontrarei em palestras jurídicas.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A vida

Minha irmã me disse que eu pareço educado e controlado nos posts deste blogue e que sou impaciente e mal humorado pessoalmente. Eu não me acho facilmente irritável, nunca fui tão Pato Donald assim, mas com certeza estou longe de ser um deus da paciência ou da virtude; o que ocorre é que isto é um diário, se outras pessoas o lêem é por puro acaso (eu, por exemplo, não gostaria que minha irmã o lesse), e não há qualquer razão para ser agressivo nessas linhas tão despretensiosas... E de qualquer modo eu me acho bem violento às vezes no que escrevo, mesmo que pareça polido: por exemplo no post sobre a cultura boêmia universitária. Enfim.

Minha irmã (e minha mãe também) ainda disse que eu deveria visitar um neurologista, para que ele me cure de uma suposta depressão. Eu já declarei aqui meu pavor a medicação artificial, e a não ser que realmente constate ter um problema (e eu sou o melhor crítico de mim mesmo) eu não tomarei nada, nunca; meus problemas são facilmente identificáveis e eu não me sinto impelido a me viciar em pilúlas para saná-los. A faculdade é o pior deles, vivo falando isso aqui. A solidão, também; mas não é algo da minha cabeça, é um fato: não tenho amigos, não tenho namorada, o povo da faculdade não quer saber de mim (e vice-versa) a não ser para discutir os assuntos de lá, me sinto solitário em casa também (onde penso que todos me olham com certa desconfiança, por eu não gostar de direito [numa casa com quatro advogados], por eu só gostar de coisas fúteis como cinema e arte), até meus conhecidos da internet eu sinto distantes — com honrosas exceções (a maior parte leitora deste blogue, por sinal) —, eles se tornaram para mim arrogantes, frios, impiedosos. No final das contas, meu problema é justamente ser muito lúcido. Mas há quase vinte e três anos venho tentando remediar isso.

sábado, 3 de abril de 2010

Turbilhão

Oscar Wilde tem uma frase mais ou menos assim: "Deus me livre das dores físicas, que das morais me encarrego eu" (citada por Truffaut em sua adaptação de Jules e Jim). Essa frase é perfeita para ilustrar meu estado de ânimo hoje: após uma noite extremamente mal dormida, em que por causa do nariz entupido tive que respirar com a boca o tempo todo (algo que me faz sentir quase sufocamento, me sinto me afogando no ar), acordo com as duas narinas completamente obstruídas, sem poder respirar pelo nariz — geralmente esse entupimento, quando ocorre, atenua-se quando permaneço sentado ou em pé. Acordei cansadíssimo, olheiras, olhos inchados, o nariz imprestável como se para nada servisse, os lábios todos descascados pelo movimento de aspirar e expirar vento por horas, secos, nenhum "assoamento" ou remédio pra nariz adiantando, quando tento expelir o muco ou sei lá o quê que me tapa as passagens de ar minhas veias da cabeça quase fazem cicatrizes na minha pele da testa, sulcando-a com violência e cor vermelha. Depois me sinto fraco pelo esforço que fiz, o coração cansando, acho que devo ter sinusite, preciso ir ao médico.

A alegria de ficar doente num final de semana depois do feriado.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Harmonia

Eu tenho uma relação bastante forte com as músicas que gosto. Dificilmente ouço algo por ouvir, uma vez apenas, tampouco escuto inúmeros artistas; a maior parte dos meus discos (inclusive os baixados) eu ouvi dezenas de vezes, e no caso de discografias eu ouvi e ouvi e ouvi as mesmas músicas até "assimilar" os sons e passar a outras coisas e ir conhecendo os álbuns em sua íntegra. Talvez por isso a impressão que as músicas guardam em mim é muito forte. Quando ouço uma música de que gosto muito isso significa também transportar-me à época em que a ouvi bastante até me acostumar, em que seu som me intrigava o suficiente para seu lugar na minha memória ficar singularmente marcado — mais do que acontece com os filmes, livros e quadrinhos que consumo.

Em meados do ano passado ouvi quase em seqüência ininterrupta os doze discos de estúdio (e algum material ao vivo) de uma das minhas bandas favoritas, Gentle Giant; quando ouço a lindíssima Just the same eu me sinto de volta à auto-escola, sentado na sala perto da minha irmã, com um monte de gente que nunca mais vi, esperando a aula começar, por volta das sete da manhã, ouvindo música no celular (que quebrou e não executa mais mp3):



Quando ouço as canções da minha banda favorita of all time, Led Zeppelin, sinto-me de volta ao Ensino Médio, aquela tensão do vestibular, as provas que se sucediam interminavelmente, as matérias que eu nunca pude compreender, as conversas do intervalo, as risadas com colegas zombando dos professores, caricaturando todo mundo, a época em que aprendi a ouvir música de verdade e lia sempre ainda, vivendo um pouco mais alegre que hoje:



AC/DC é sempre uma diversão e um prazer, e eu me recordo de ter gravado vários discos no celular e ouvido faixa por faixa na época que coincidiu mais ou menos com o meu trabalho num Juizado Especial até meados do ano passado; andar de metrô e ônibus, levando sempre um livro (García Márquez, Lygia Fagundes Telles, Jorge Amado, Guimarães Rosa...), os papos descontraídos com o pessoal do trabalho, o povo irritante que eu atendia, o cansaço do final do dia, o suor na roupa social:



Sá, Rodrix e Guarabyra me lembra a minha escola; não os anos mais felizes da minha vida, mas a festa junina do ano passado, novamente ouvindo no celular as músicas enquanto passeava pelas barracas, via a alegria das crianças correndo na pressa de suas infâncias, o Zé Rodrix havia morrido há pouco e eu finalmente conhecia suas brilhantes composições (domingo vou num show do Sá e Guarabyra!):



Shostakovich é um dos compositores constantes na trilha de Fantasia 2000, um dos primeiros CDs que comprei (provavelmente o primeiro relevante), meus primórdios de admirador de música, quando tive consciência de que cada nota tem importância, cada ligação e pausa faz sentido em uma estrutura musical; talvez a música seja muito narrativa se você viu o desenho, mas continuo achando-a de uma beleza impressionante e ela me transporta para a época em que eu não tinha nenhum "pensamento pessimista" (como os chama minha mãe) e ouvia Chopin acima de tudo:



Naturalmente não vou me estender sobre os motivos que me fazem amar e carregar comigo cada uma das milhares de músicas que amo e que são ou foram importantes para mim. Este post é só para eu me lembrar que é impossível esquecer.