sexta-feira, 17 de junho de 2011

Derrota

Uma das razões para eu procurar colocações em outras áreas que não a minha de "formação" (?!) é que simplesmente eu não compreendo nada do que envolve o direito e suas utilizações.

Sempre que vou num fórum ou num cartório eu preciso ter um rol bem definido do que fazer, um texto ensaiado do que dizer, porque se sair desse esquema eu vou me atrapalhar, eu não saberei o que dizer, eu vou errar.

A minha faculdade foi lamentável, em matéria de ensino, e meu estágio foi praticamente extra-jurídico. Experiência: zero. Saí da faculdade como se nunca tivesse visto nada daquilo tudo. E aí agora preciso me forçar a entender que vou ter que viver disso o resto da vida, me arrastando como um verme por entre conceitos, livros e práticas que eu não aprovo e nem compreendo.

Seja para protocolar uma peça ou para pedir cópia, se me perguntarem algo do processo eu ficarei nervoso. Corarei, gaguejarei. Serei como aquele ator que não sobrevive ao improviso do colega, o "stage fright" já se apoderou de seu caráter, se ele tenta sair de si é porque não haverá mais volta para ele.

E eu me sinto mal. Sinto-me atrasado, imbecil, indecente. Como se todos fossem capazes de entender uma verdade óbvia e eu continuasse na dúvida. Sinto-me humilhado com os olhares inquisidores de reprovação, com as atitudes que condenam minha incapacidade, com os êxitos e facilidades dos outros. Para eles é tudo simples, evidente.

Eu não sei o que extrair disso. Eu não sou um daqueles hipócritas que, indagados sobre possíveis arrependimentos na vida, dizem: "eu só me arrependo do que não fiz". Eu me arrependo de muitas coisas, e a principal delas foi a que praticamente me condenou. Já não tenho mais ânimo ou condições de falsear coragem nessa batalha.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Círculo

Em meses de inatividade (por várias forças, sendo a principal o desânimo), eu tento vez ou outra vislumbrar alguma expectativa adiante, mas só me iludo. Hoje vejo no jornal: "repórter da revista tal - ver caderno de empregos". Muito bem: o caderno de empregos diz que é preciso domínio de inglês, base cultural considerável e EXPERIÊNCIA EM REPORTAGEM. Ora, se todos os empregos e vagas só são preenchidos com gente experiente, what's the purpose ("domínio de inglês")? A coisa vira uma simples "panelinha": quem tá fora quer entrar, mas quem tá dentro não sai. É isso. Só se vai de um veículo a outro, e se você não é um dos "iniciados", vai ficar sem essa oportunidade. Cansa até falar em hipocrisia, então eu paro aqui.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Cequesabe

Com o recente e crescente debate acerca do humor pra lá de duvidoso dos integrantes do CQC, estamos em dias de "repensar" nossas abordagens em comédia e "avaliar" se o que dizemos ou do que rimos é realmente algo assim tão engraçado.

Talvez seja bom refletir sobre o assunto, mas eu já estou me cansando. Blogues e redes sociais e comunidades virtuais não param de produzir quilométricos textos discutindo as tais "piadas" e demais características do problema. Mas o meu problema é: por que é tudo tão oito ou oitenta?

Eu concordo com quem diz que o CQC é um programa preconceituoso travestido de revolucionário, que destila imbecilidades com a mesma facilidade com que se cobre com o manto do "politicamente incorreto". Mas será que deveríamos nos preocupar tanto com esses caras?

Quem os acusa, defende uma visão RADICALMENTE OPOSTA à que eles possuem. Então são totalmente pró-aborto, feministas, a favor dos direitos homossexuais. Mas uma defesa irrestrita é tão "one-sighted" quanto um ataque irracional. Por exemplo, com relação ao último desses tópicos, eu tenho algumas considerações (que listarei em forma de itens):

1) Não me interessa saber a sexualidade dos outros. Não deveria interessar a ninguém saber a sexualidade dos outros. A não ser que você quisesse se relacionar com a pessoa, e isso não deixaria de ser pessoal.

2) É hipocrisia embarcar na denominação ultrapassada há décadas de "opção sexual", como se alguém optasse por tal ou tal "preferência" por pura liberdade de escolha. E a presidente do Brasil só faz concordar com esse absurdo.

3) Evidentemente os homossexuais têm direito a direitos (redundância necessária), não se deveria sequer discutir sua vida privada na hora de tratá-los como qualquer outro cidadão, possuidor de direitos e deveres.

4) Da mesma maneira que os homossexuais têm direitos, os conservadores (que todos tratam como "homofóbicos", o que não é verdade; homofobia implica hostilização) também têm direitos. Se um homem heterossexual se sente incomodado ao passar com seus filhos pequenos na frente de um casal homossexual se beijando apaixonadamente, qual o problema?

4.1) Não há problema algum. O homem evidentemente ficará um pouco constrangido para explicar a situação aos filhos. Ficar constrangido ou incomodado NÃO é repulsa ou agressão. Não são apenas os homossexuais que têm direitos a sentimentos.

4.2) Se já é um tanto desagradável ver casais heterossexuais em carinhos mais "fortes" em locais públicos, por que os ativistas se escandalizam quando o comentário é de que a pessoa ficou "sem graça" ao flagrar esse mesmo comportamento por parte de homossexuais?

5) Não é preciso ser um Bolsonaro, estúpido e virulento, para discordar dos extremos da questão. Todo mundo conhece aquele casal homossexual que, para "chocar" (eivando-se de blindagens como: "é meu direito" e "você é homofóbico"), comporta-se de maneira socialmente inadequadada — o que pode acontecer com qualquer pessoa, ressalte-se; disse lá acima e reitero: todos são iguais — e constrange quem quer que os observa.

6) Não se trata de preconceito, é preciso repetir. E nem de "façam o que quiserem, dentro de casa". Eu não sou integrante do CQC. Eu não concordo com segregações e distinções. Só acho que tão ruim quanto a serra que corta o tronco é o tronco que quebra a serra. É preciso dar voz a todos e direitos a todos sem com isso criar ódio, intolerância, oportunismo.

6.1) A maneira para conseguir isso, creio, é simplesmente fazendo o que eu disse no começo do texto: esquecer a sexualidade alheia. As pessoas são boas, ruins e mil outras qualidades por méritos e ações próprias, por centenas de fatores e condicionantes, e não há nada de especial em ser homossexual ou heterossexual ou o que seja, se você quer uma vida sem inúteis rótulos reducionistas.

Mas claro que se você defende quem vai de encontro aos babacões de plantão, te jogam no balaio e você vira mais um idiota reacionário.

P.S.: Só para esclarecer à minha irmã, stalker número 1 do blogue: o post anterior é relacionado a um problema MEU (olha o ciúme aí de novo), só isso.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Ciúme - O inferno do amor possessivo

Uma das minhas piores qualidades é o meu ciúme. Essa é uma dimensão incontrolável da minha personalidade, e eu tento domá-la com sua pura constatação; nem sempre consigo, contudo.

Não tenho muitos amigos, não tenho namorada e não tenho muito em que me firmar ou de que me orgulhar. Portanto, me resta o material. Tenho ciúme das coisas físicas, dos meus objetos. São eles a minha História.

A coisa se verifica geralmente com meus irmãos. Desde há muitos anos, eles nunca demonstraram interesse pelas coisas de que eu gostava, que importavam a mim e das quais necessitava, no sentido que seja. Nunca quiseram saber o que eu lia, o que me tocava, de que tendências eu me preenchia. E hoje eles têm consumido algumas coisas que sempre foram caras a mim. Minha irmã, por influência do namorado, vê filmes que sempre indiquei ou vi e para os quais ela não ligava a menor relevância, não queria me ouvir falar sobre, não podia se importar menos; meu irmão, por influência talvez de amigos ou de certas mídias, outro dia comprou um livro de um personagem que leio desde que estava na escola, e também para o qual ele nunca consagrou qualquer atenção.

Essas coisas todas, sejam elas discos, livros, filmes, quadrinhos ou o que for, eu as tinha como MINHAS, são minhas amigas, meus pertences. Eu não tenho amizades e não construí qualquer coisa na vida, então o que me define são elas, as coisas, que moldaram meu caráter e transformaram meu gosto, minhas percepções e sentidos.

Então quando vejo o interesse dos meus irmãos, por exemplo, eu me sinto um pouco incomodado, quase atacado. Como se tirassem parte da minha individualidade. Eles aproveitam tudo isso independentemente de mim, talvez até APESAR de mim. Claro, não posso e não vou impedi-los de consumirem bons produtos do que quer que seja, mas reservo a mim o duvidoso direito de me ressentir com isso. De ver que a minha História, afinal, não é minha, essas coisas não dizem mais a mim do que dizem a eles, quem sabe?, e eu tenho que procurar agora, assim à força, seguir um caminho próprio, livre de interferências, onde sentimentos ruins como o ciúme não façam parte de mim.

É difícil, muito difícil. Ver alguém que viveu a vida toda junto a você e não te conhece para saber como é meio um tanto um pouco desagradável comprar aquele livro que você tem desde pequeno, ou aquele álbum que foi seu favorito da adolescência, só agora descobrem tudo isso e você se sente traído por essas mesmas coisas que foram seu único amparo durante não sei quanto tempo. Deve ser por coisas assim que os monges se desprendem de tudo. Coisas materiais representam lembranças, eventos, condições.

No mais, isso tudo deve ser falta de namorada mesmo.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Malhação

Saiu há poucos dias na mídia a notícia de certos policiais que dançaram o hino nacional "à la mode" funk carioca. Choveram comentários de repúdio, consternação e pasmo. À parte uma meio inquestionável boçalidade dos policiais, o que eu vi foi, da parte dos espectadores tardios do episódio, uma pavorosa demonstração de apego a valores que já deveriam estar sepultados há décadas. Vi comentários na base do "é um absurdo, é um símbolo brasileiro", "é criminoso, não se deve nem cruzar os braços durante o hino" e "que belos policiais temos no Brasil!". Sim, mas vou além: que belo país temos no Brasil!

A obrigatoriedade de se emocionar com hinos que só dizem respeito a projetos militares e páginas negras da nossa História (eleições e solenidades burocráticas, por exemplo) é um sinal de atraso e portanto uma vergonha. Essa mentalidade condicionada, de que hino é respeito, se atrela a outras vulgaridades, como as noções sempre estapafúrdias de pátria, nação, terra e respeito. Hino é um símbolo de medo, pois não se pode tocá-lo com mãos profanas, temor religioso de desrespeitar seu solo. O solo de um país é desrespeitado pelas maldades que nele se cometem, e não por desapego à "memorabilia" cívica, esperando estar naqueles segundos de cantoria decorada prestando um grande serviço à consolidação de nossa identidade.

Eu não me identifico com nada disso. Gosto da nossa bandeira e do nosso hino, mas como curiosidades e adereços, e não gostaria de ver assolar o Brasil uma onda como a do ufanismo absurdo que contaminou toda a percepção universal de certa parcela do pessoal dos Estados Unidos, por exemplo.

Acho que aqui se está longe disso, mas não custa nada dar o meu malho nesse Judas do egocentrismo nacional.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Encantamento

Temos por "mágico" tudo aquilo que não tem explicação clara, científica ou racional. Mas eu acho que há magia em tudo, todos os dias, e não percebemos nem nos damos conta. Muitas vezes, saber a origem de determinado fato não basta para me fazer crer que aquilo seja vulgar.

Televisão, por exemplo. Todos os dias temos transmissões em tempo real, eventos mil e qualquer outro tipo de programação. Mas não é mágico capturar instantes das vidas das pessoas e eternizá-los? Não é mágico ligar um aparelho em sua casa e ver imagens de situações que estão ocorrendo naquele mesmo instante em um outro lugar do mundo? Não é mágico, enfim, transmitir imagens e sons e cores por todo o planeta? Sei que para tudo há explicações físicas, químicas, matemáticas, mas por que deixar de se admirar?

As coincidências também não deixam de ser apenas, bem, coincidências. Mas eu gosto de contar o que aconteceu quando fui comprar a edição em inglês de Fahrenheit 451 (que será uma de minhas próximas leituras): eu já tinha a tradução brasileira, mas queria ler no original, e, mesmo o livro de bolso sendo relativamente barato, fiquei hesitante um bom tempo, me sentindo culpado por jogar dinheiro fora, aqueles arrependimentos do consumo que nos fazem suar por agonias bobas relacionadas ao vil metal, espaço físico em casa e outras mundanidades. Então, após minutos de compro-não-compro, pego o livro, vou ao caixa, pago e vou embora nada satisfeito. Mas, ao sair da livraria para a rua, deparo-me com uma loja chamada... MONTAG! Que é justamente o nome do protagonista de Fahrenheit 451. Fiquei feliz com a aquisição.

Sei que é uma coincidência compreensível: a loja sempre esteve lá, aparentemente é uma marca famosa (eu não conhecia), e não foi um acontecimento extraordinário eu comprar um livro que deu origem a um filme de François Truffaut, pois não é de hoje que o admiro e busco suas fontes; também gosto de Bradbury, tendo me impressionado muito com seus quadrinhos de horror.

No entanto, não é impressionante quando todos os fatores se juntam para um determinado efeito de impacto? Quero dizer, não é incrível quando coincidências ocorrem? Então por que tirar seu mérito afirmando: "isso pode ser explicado"? Sim, claro que pode, Holmes já disse que "todos os problemas se tornam infantis depois de explicados". Mas haverá menos fascínio quando você conhece a causa do assombro?

quinta-feira, 5 de maio de 2011

O limbo

Há uma pedra, redonda, que rola para lá e para cá ao sabor das circunstâncias: ela se move por força do vento, pela conformação do solo, por inércia. Essa pedra é qualquer um. Há uma pedra, redonda, que poderia rolar para lá e para cá ao sabor das circunstâncias: não há vento, o solo é plano e ela é inerte em sua estagnação. Essa pedra sou eu.

Já falei aqui que tenho problemas com coisas óbvias a todos, e talvez seja essa a razão de ser pedra parada. É como se eu vivesse em uma outra dimensão em que nenhuma força pode me mover, como se eu não tivesse ligação nos nervos para correr e não tivesse qualquer atividade cerebral, cérebro pulsando, coração batendo. É aquilo de "existir, mas não viver".

Não sei dizer o que ocasiona aos outros as oportunidades que nunca me sorriem: iniciativa, sorte, acaso. Só sei que para os outros as coisas a meu ver são mais fáceis, mais propícias, mais nítidos os caminhos por que devem seguir, o que devem fazer, como agir.

Talvez eu reclame demais, talvez não (afinal, as coisas se passam comigo e só a mim sei quanto afetam), mas parece-me que é como se Cupido me flechasse com setas sem ponta, Minerva me desse apenas a ilusão de sabedoria e Vulcano me dissesse: "trabalhe, e trabalhe duro", mas sem me dar qualquer ferramenta para exercer ofício que seja. E enquanto eu não tenho nada a IMPEDIR a plena manifestação de meus poderes, nada tenho para DESENVOLVÊ-LOS, e noto-me sozinho numa ilha que até Júpiter esqueceu de castigar com seus raios prepotentes.

De vez em quando é bom saber que te enxergam.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Substituições

Após cerca de uma dezena de anos comprando e colecionando centenas de DVDs, agora o Blu Ray parece ter se instalado de vez. Vejo muita gente substituindo seus filmes, comprando as tais "ultimate editions", gastando um grande dinheiro e tempo em juntar Blu Rays de seus filmes favoritos, os mesmos que já se tinha em DVD.

A mim, isso não traz outra coisa que preguiça. Ao invés de me coçar para querer substituir tudo, essa febre teve efeito contrário: meu consumismo encontra-se moribundo, e quase não tenho vontade nenhuma de comprar mais nada nesse novo formato (e nem no anterior). Pelo menos não enquanto não acabar de ver todos os DVDs que tenho encalhados, ou enquanto os Blu Rays não baixam de preço, ou enquanto isso não tiver mais importância para mim.

Porque no final das contas essa cultura de substituição só mostra como tudo isso é dispensável. Assim como o VHS foi substituído pelo DVD, o DVD vem sendo recolhido pelo Blu Ray, e o Blu Ray daqui a poucos anos será trocado por outra mídia. Isso me cansa, essa necessidade de se atualizar em tão pouco tempo. Mais uma vez esbarro no velho conflito truffautniano do provisório versus o definitivo. E já sabemos quem costuma ganhar esse embate.

Também é sintomática a migração massiva do Orkut para o Facebook, e novamente em mim isso tem efeito diverso ao esperado: não quero mudar minhas fotos, trocar de "plataforma" ou construir outro perfil virtual; simplesmente canso e passo a usar essas redes com bem mais contenção. Daqui a um tempo, quem sabe eu não consiga uma vida real que faça minha vida virtual ser apenas um acessório extremamente fútil?

Isso serve para mostrar à minha geração a falência desse estilo de vida. No final das contas, crescemos e nos desligamos de tudo isso: arranjamos empregos, namoradas, responsabilidades e deixamos de lado o que achamos que era importante no computador, na internet, nas redes. Agora valorizamos mais estar com os amigos, sair ou fazer outras atividades, e todo o nosso compartilhamento virtual se resume agora a informações telegráficas ou piadas ligeiras. Acabou o entrosamento, o debate e a relevância de tudo isso. Muita internet serviu para nos mostrar que precisamos de menos internet. A invasão já foi muita, e agora nossa intimidade deseja privacidade. De novo, até outra coisa alterar isso, e outra coisa depois.

É melancólico constatar em históricos de MSN como mudamos, como as coisas deixam de ter importância e como tudo muda rápido: em um período de cerca de cinco anos, deixamos de falar com quem falávamos muito, não nos influenciamos mais tanto pelo gosto e opinião alheios, não queremos mais impressionar ou formar uma existência digna fora de nossa realidade física. Agora a internet é coisa de momento, como o era quando surgiu. O Blu Ray é assim também. E tanta tecnologia nos indica que não necessitamos dela. É uma contradição que se faz cada vez mais presente.

Acabamos voltando às velhas formas: com tanta modernização forçada e passageira, a melhor opção é pegar um livro, sentar-se e ler.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Fim

Quando as coisas acabam, elas deixam uma marca indelével na gente.

Eu estou no fim da leitura de Don Quijote, a menos de cinqüenta páginas do término, e a sensação é dúbia: por um lado sinto-me extremamente feliz por ter lido uma obra tão linda e fascinante, e por outro é como se eu estivesse deixando uma parte de mim com a leitura. Acompanhei durante mais de três meses os devaneios do fidalgo e seu escudeiro, os dramas e comédias de que foram vítimas e também a vida de mil pessoas com que se depararam. E aí acabo assim, numa semana qualquer, já pensando no próximo livro a ler. Don Quijote morto mas imortal.

Também sinto-me estranho com o fim das relações, quando elas desaparecem desse modo inesperado. E um amigo se vai, outro o substitui, a gente vai vivendo, se acostumando com as ausências e tentando acreditar que a memória é suficiente para dar cabo dos momentos de agonia e torná-los felizes com as recordações de antigamente. Da mesma maneira que trabalhamos anos a fio em um prédio, nos realojam em outro edifício, outro bairro, e naquele antigo lugar de trabalho ficou um pouco de nossa História. E como isso pode ser recuperado?

A verdade é que precisamos a todo instante de paliativos para os sofrimentos que podem comprometer nossas vidas, remédios para as pequenas ou grandes infelicidades cotidianas. Então consumimos arte, saímos, conhecemos outras pessoas, mudamos de emprego e vamos estudar em outro curso ou faculdade, tentando um dia se ajeitar no definitivo e largar de vez o provisório; e vamos claudicando, batendo a cabeça, com os olhos meio inchados pelas lágrimas em vão repelidas das oportunidades perdidas, e tentamos ir em frente.

E aí cada vez mais eu me assombro com a sabedoria dos fabulistas, quando me lembro do diálogo entre o trabalhador e a morte narrado por La Fontaine:

Velho, caindo sob o peso de um feixe de lenha: — MORTE, morte, por que não me escutas?... Venhas logo, já não agüento mais, estou cansado...
Morte, aparecendo aterradora: — Que desejais, velho?
Velho, assustado: — Quero que me ajudes a recolocar a lenha nas costas.

Porque no fim das contas ninguém quer de verdade que tudo acabe de repente.

domingo, 10 de abril de 2011

Quixotadas

Seguindo na leitura de Don Quijote, o caráter insólito de várias personagens me chama a atenção. Há alguns fenômenos peculiares que ocorrem com elas, e isso lhes dá uma dimensão muito particular. Alguns exemplos:

- Todos que zombam de Don Quijote gostam de ridicularizá-lo tratando-o por grande cavaleiro e a Sancho por exímio escudeiro; mas, velados na sua hipocrisia, favorecem a imaginação dos dois companheiros, e assim acabam tratando-os melhor do que se simplesmente desmentissem seus credos. Há uma cena na casa de duques, em que Don Quijote e Sancho são levados a crer, de olhos vendados, numa farsa de artifícios teatrais; não desconfiando da peça que lhes é pregada, eles terminam a tarefa com grande alegria por fazê-la chegar ao bem sucedido término. Então eu questiono: o que fizeram a eles é moral? Porque no final das contas eles ficaram muito satisfeitos, e cônscios do valor de sua jornada e ação.

- Quando Don Quijote se depara com algo desconhecido ou inexplicável, começa logo a falar dos encantadores perversos que o perseguem. O que pode parecer simples fantasia é na verdade a maior das coragens: reconhecendo como verdadeiro apenas aquilo que se lhe parece como tal, Don Quijote enfrenta o desconhecido com ânimo reforçado, como a dizer: "certas coisas encantadas não posso vencer; as demais, enfrento de peito aberto e valor posto à prova".

- Os delírios de Don Quijote não me parecem ser tanto fruto de loucura, mas de uma percepção distorcida da realidade. No fim das contas, ele de fato tenta consertar os tortos do mundo e ajudar aos necessitados, mesmo que para isso corra o risco de sofrer a incompreensão do mundo que o julga anacrônico e estapafúrdio. Mas o que é mais errado, ser um cavalheiresco cavaleiro andante numa época errada ou ser injusto, vil e sórdido como todos que se divertem tratando-o como uma aberração digna de risadas?

- Sancho por vezes tem seu amo como louco, outras vezes é reputadamente tido por muitos como ainda mais fora do juízo que seu mestre. Mas para qualquer efeito ele está sempre a postos, e é injusto tratá-lo como um simplório mentecapto, quando ele demonstra crescer a cada aventura, até falando de maneira mais polida, sonhando com grandeza, trazendo a lógica humilde da vida prática a situações que são descritas de maneira tão ímpar por Cervantes que somos até gratos a Sancho por ele nos lembrar que nada é o que parece (ainda que ele mesmo acredite no contrário, por vezes, como no caso do singular encantamento de Dulcinea).

- Há que se destacar a beleza inesperada dos conselhos que Don Quijote dá a Sancho quando o fiel escudeiro está prestes a finalmente tornar-se governador de uma ilha.

Minha leitura acaba provavelmente no fim do mês. Mas tudo isso cavalgará comigo para sempre no Rocinante imortal da minha lembrança.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Paranóia e mistificação

OK, agora chega dessa palhaçada de falar que Monteiro Lobato era eugenista. Eugenia não é o que ele defendia, não como eugenia é hoje entendida. Se ele tinha seus credos, está longe de ser racista ou defensor de uma pureza racial absurda. Não, não li O presidente negro — como de resto todos os que apontam essa obra com dedo denunciatório parecem nunca ter lido outra obra lobatiana. Não leram sua defesa do negro açoitado pelo resquício da hipocrisia social advinda com o fim da escravidão, na figura de Tia Nastácia, essa sábia que cria a vida (Emília e Visconde), como uma deusa, que aprende no medo a ter forças para desbravar o irracional, que é um acalento para o caos da modernidade do “progresso” quando estende suas mãos cansadas de trabalho duro (negro trabalha e trabalha muito) para afagar as crianças do sítio de Dona Benta ou lhes fazer doces, pipocas, contar as histórias que seus antepassados lhe foram ensinando; também não leram a tradução que Lobato fez de As aventuras de Huckleberry Finn, essa obra que é talvez um dos maiores libelos contra o racismo, a escravidão, a segregação racial e tudo isso que de podre acusam Lobato — ou quererão esses senhores lhe impingir a fabulosa pecha de ter adulterado o sentido da obra de Twain? Ou quem sabe Lobato, em sua eugenia galopante, teria usado esse célebre romance para blindar-se no escudo da hipocrisia? A ironia é que Twain também vem sendo lido por censores grotescos como preconceituoso em várias passagens desse livro; não entenderam o narrador moço ignorante (da instrução “formal”, apenas) que narra a história.

Consagrar a um escritor uma interpretação puramente literal de suas obras é a coisa mais estúpida e ridícula que alguém pode fazer, e uma escritora, Ana Maria Gonçalves, deveria ser a primeira a entender que Lobato nunca investiu no “processo de chamar negro de burro aqui, de fedorento ali, de macaco acolá, de urubu mais além”, como essa senhora afirma tão categoricamente em seu artigo.

Falta a ela, e a tantos outros apressados detratores de Lobato (como Muniz Sodré), entender que quando Emília chama Tia Nastácia de “negra beiçuda”, entre outros ataques violentíssimos, não é Lobato que condena a existência dessas “almas negras” entre nós brancos que somos ou deveríamos ser, mas é uma de suas personagens, errando, agindo mal, sendo cruel e nitidamente servindo de contra-exemplo — que o choque das expressões tão grosseiras deveria deixar inquestionavelmente explícito, mas que, pelo visto, nesse ponto Lobato falhou: Ana Maria Gonçalves e tantos outros não entenderam. Acham que haver um personagem racista num livro é racismo do autor, é obra racista. É um argumento tão grotescamente estapafúrdio que mais uma vez me surpreendo de estar aqui respondendo a esses ataques ocos de qualquer coerência.

E ainda Lobato vai além: se Emília age mal, é repreendida por Dona Benta (a dona da casa, autoridade máxima), é castigada (em Memórias da Emília, após um concerto de ofensas a Tia Nastácia, os planos da boneca de se valer de uma certa criatura angelical são frustrados e ela deve se valer apenas de sua frustração e desapontamento), é criticada (o Visconde afirma que ela é má, sem coração — Lobato eugenista criou um arquétipo bastante controverso para propagar seu racismo, parece), e, afinal, recobra a consciência moral quando percebe que cor não serve a nada, as pessoas são boas ou ruins por mil outros atributos e Tia Nastácia é um exemplo de gentileza, bondade, solicitude, sabedoria em seus modos e costumes.

Isso não é hipocrisia, isso não é eugenia, não é auto-indulgência, medo de reprovação ou receio de censura. Lobato escrevia o que queria, publicava seus próprios livros e só devia ajustar contas com as crianças suas leitoras. Das quais nunca se teve notícia que foram influenciadas negativamente por pensamentos raciais questionáveis encontrados em suas obras. O que está havendo, parece, é a eterna má vontade, preguiça e (agora sim) preconceito dos adultos. Que levam tudo ao pé da letra, que desaprenderam a contextualizar, a compreender, a “ver a vida” (como Dona Benta recomendava a seus netos), e, portanto, não conseguem ter a curiosidade, a inocência de procurar ver o que está além do superficial, do óbvio, o que as crianças faziam e ainda fazem, sempre farão. Para todas essas infelizes pessoas que só existem por preguiça de viver, Lobato ainda é pertinente e incomoda. E é por isso que ele tem se tornado maldito.

Voltando propriamente à eugenia, a senhora Gonçalves, como todo agressor que se preze, gosta de procurar argumentos nas falas e opiniões divulgadas de seu alvo de ataque. Então para ela é um pulo destacar uma frase de correspondência de Lobato como: Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente, cometer a sangue frio o belo crime que sugeri. E ela então se acha na razão, comodamente esticando os dedos ante a vitória contra a literatura de sugestão; mas quem sugestiona o leitor é ela, quando não o lembra do inescapável humor de Lobato, ao reputar sérios chistes como “o belo crime que sugeri”. E o que dizer de Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros? Chega a dar pânico saber que tem gente que entende isso da maneira literal.

Não cansada, ela remonta a batidíssimas lembranças da relação de Lobato com Renato Kehl, como se admiração ou amizade fossem provas de qualquer desvio de caráter. Ora, os milhares, potencialmente milhões, de fãs da conduta “transviada” de Charlie Sheen, que o seguem nas redes sociais e citam divertidos seus feitos, essas pessoas estarão se confessando usuárias de drogas, amigas das farras, das orgias, do “misbehavior”? Faça o favor, senhora Gonçalves. Uma conclusão tão absurda quanto me desconcertam as centenas de comentários de seus seguidores no final do texto indicado acima, repleto de “macaquismo” — que eles entenderão como uma expressão racista, apesar de ser evidente que me refiro aos animais que gostam de seguir e imitar outros animais —, desinformação da pior espécie, como criticar ou “deixar de gostar” sem se prestar a descobrir e buscar fontes e materiais por conta própria. Pensar com a cabeça dos outros gera só um pensamento.

Pretendendo desmistificar um ídolo, Ana Maria Gonçalves mostra-se desesperada por atenção, como ao agregar à sua crítica elementos que nada têm a ver com a discussão: o caso do Jeca Tatu no Biotônico, época em que a publicidade no Brasil ainda era testada e não se pode hoje analisar essa experiência como sendo mais do que o que ela foi, ou seja, um experimentalismo. Extrair daí qualquer conclusão sobre o caráter de Lobato e suas intenções com suas obras é fazer uma ponte inimaginável, construída com tijolos inventados, e que, logo, não leva a lugar algum — o que se repete com a investigação tendenciosa que faz de certos destinos comerciais de obras do Ziraldo, e até um comentário totalmente deslocado sobre o Simonal —; o texto inteiro segue o mesmo iter: não possui lógica para se manter, mas fala bonito aparentando preocupação com um assunto do qual não possui referenciais para falar: citar ao acaso trechos que comprovam seus complôs forjados é o mesmo que apresentar aos amigos um cachorro que você disse a eles que sabe falar o próprio nome, e após os latidos do bicho dizer que seu nome é “Auau”. É engraçado, mas não deveria passar de uma piada. E o texto é trágico porque é enxergado com uma preocupação de verdade que não possui e não tem como possuir, pois é perfeitamente frágil em sua estrutura de acusação infundada.

O parágrafo continente da frase Afinal, há quem diga que não somos racistas. Que quem vê o racismo, na maioria os negros, que o sofrem, estão apenas "macaqueando" (e seguintes) é uma pérola da pernóstica refutação de argumentos moldados pelo contra-atacante, argumentos que nunca foram propostos pelo alvo da vez (seja Lobato ou Ziraldo ou quem for o “bode expiatório”, como Ana Maria Gonçalves reitera), coroados pela percepção reducionista de que Lobato seria um dos escritores mais racistas e perversos e interesseiros que o Brasil já teve, uma exposição macabra que joga o cesto de maçãs inteiro no lixo porque uma delas, segundo quem a observa na contra-luz, está podre. E aí Lobato é medonho racista e eugenista, mas todo o bem que ele fez para as crianças, para o aperfeiçoamento da didática, para a modernização do sistema educacional brasileiro, tudo o que ele fez para trazer mais livros bons para as crianças negligenciadas no Brasil de então (Carroll, Kipling, Twain, London, todos esses admiráveis autores ele os trouxe para cá, traduzindo e publicando essas obras com seus próprios recursos), tudo o que ele fez para a indústria do livro e, voltando às crianças, tudo o que ele fez para incutir em seus jovens leitores o gosto pela leitura, pelo conhecimento e por uma profundidade que não era esgotada — ele nunca pretendeu isso — em seus livros, e isso sem falar na fatigante luta pelo petróleo e pela saúde nas áreas rurais, bem, tudo isso é descartado sumariamente, pois quem vai dar a suas crianças um livro de um dos escritores mais racistas, perversos e de interesses escusos? Ana Maria Gonçalves presta assim um desserviço a qualquer coisa que teoricamente defende, mostrando-se incapaz de separar o joio de seu trigo alegado (nisso Muniz Sodré acerta, ao menos em parte).

Mas eu paro aqui. Não tenho interesse em chamá-la para um embate, não quero luzes para mim, não me pretendo centro das atenções e com certeza não tenho intenção de discutir (com) alguém que não sabe que na vida existe humor, contexto, sarcasmo e tantas outras armadilhas da língua para sermos apanhados em nossos vis desejos de literalidade. Tampouco quero prosseguir nos meus desagrados com o texto da senhora Gonçalves, tanto mais que ele incorre em tantas incorreções e inverdades (até raciais, diria, pregando subliminarmente uma espécie de racismo inverso) que não tenho qualquer recompensa em debater uma a uma as dezenas de problemas que tenho com ele.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Tilt

Não saber o que fazer é uma das piores sensações que existem. Não é à toa que Hamlet há séculos impressiona as pessoas: os dilemas são muitos e não há como resolver a tudo. Eu estou em um, também.

Quando somos pequenos, a indefinição sobre o que queremos da vida é até graciosa: "quero ser astronauta", "vou ser modelo", tudo é motivo de riso e enternecimento. Mas quando se chega na minha idade e é preciso se sustentar, essas dúvidas são a pior chaga que se pode ter.

Não saber o que fazer é uma coisa tão feia e atroz que não só é insuportável tentar fazer aquilo que você despreza ou para que não tem o menor dom, capacidade ou habilidade, como também é... impossível. Chega um ponto em que você deseja tentar se burocratizar ao ponto de virar um robô, braço mecânico sem emoções designado para o desempenho de determinada tarefa; só que você está enferrujado, e não encontra o óleo adequado para se movimentar. Você é um monte de ferro-velho.

Aí você tenta se encaixar, e percebe que tanto pior é sua falta de perspectiva porque você não tem com quem dividir essa jornada. Amigos? Nenhum de verdade; colegas e conversas esporádicas, mas nenhum afeto real e imprescindível, ninguém precisa de você. Família? Zombam de suas fragilidades, pois ela que as construiu em sua maior porção. Companhia? Inexiste, pois é impossível gostar de alguém que não se encontra. O desencontro dita as regras, e se você quer sair desse mar, não adianta procurar uma saída por baixo, o afogamento só se torna mais presente — e você está azul atrás da luz solar que já está tão longe quanto seus ideais.

Ideais que você também não tem, pois se fosse forte o suficiente entenderia que é preciso se metamorfosear para escapar dos predadores; e você, bicho ignorante e imprestável, não muda sua cara porque não tem outro avatar, ficaria um rosto de vazio que também não lhe serviria para nada.

E quando você se anima um pouco para sorrir pelo menos de sua desgraçada sorte, aparece aquela pessoa que mina suas quase nulas forças com frases como "é preciso correr atrás" ou "você está reclamando de barriga cheia".

A vida é cheia desses vazios.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Bebebê

Eu não sou uma pessoa sociável. Nunca tive muitos amigos, não tenho o "perfil" de alguém popular, que sempre é chamado para eventos, festas, encontros. E até entendo de certa maneira por que as pessoas se fecham, não querem mais conviver tanto com os outros, querem liberdade e solidão na medida planejada por elas. Mas nada disso me faz compreender um fenômeno que não dá mostras de se enfraquecer: o Big Brother.

O BBB, como é chamado aqui, atrai pessoas de todos os níveis, culturas, regiões. A despeito de uma fase de "testes", hoje ele já possui um respaldo (se não explicito, tácito e conivente) de celebridades influentes e de pessoas de boa "instrução". Um programa que seria unanimemente achincalhado anos atrás hoje possui uma sombra de intelectualidade brejeira que o consagra como estudo antropológico de tipos e como uma vertente do exibicionismo que hoje é o prato do dia como discussão do alcance da mídia, por exemplo. Mas mesmo assim, não consigo entender a razão desse sucesso.

Porque o mesmo tipo de gente que ignora solenemente todas as pessoas na rua, todos os conhecidos e parentes e amigos, fica grudada na televisão para conferir a pasmaceira de um tédio avassalador formado por pessoas que se comunicam como primatas e que em teoria são tão interessantes de se observar quanto capim que cresce na grama.

Não se trata do policiamento do "conteúdo". Essa palavrinha entre aspas é perigosa porque remete a dogmas e convenções, e não é disso que eu falo. Acontece que é para mim inexplicável observar uma filmagem mambembe de meia dúzia de pessoas conversando as maiores imbecilidades jogadas numa piscina, ou sentadas num quarto, ou perto de um churrasco. O que isso representa? Não sei. Qual a atração disso? Não imagino. Não sei por que esse jogo seria mais interessante que perceber as conversas de ponto de ônibus, se é a "real life" que seus espectadores esperam.

Se visto pelo viés antropológico, o BBB despertaria algum interesse, se. Se? Se não fosse armado, encenado, montado. Ora, aí paradoxalmente morre a "real life". Se é tudo fingido, pensado e atuado, onde está a realidade? E aí qual é a justificativa para acompanhar as besteiras dos participantes, se eles na verdade não sentem aquilo e são só mentiras para se sair bem no jogo e na câmera? De novo, os espectadores do BBB querem teatro? Mas então por que não se interessam por essas interpretações em outros níveis menos grotescos e estúpidos?

Chegamos às "gostosas". Já é muito questionável chamar de gostosas mulheres musculosas que possuem rigidez eqüina em suas coxas e glúteos, e mais bíceps e tríceps que qualquer herói mitológico; mas se todas as participantes já se exibiam em vídeos e revistas masculinas, em sites e em outras publicações, também não se pode compreender o interesse em vê-las transitando por entre os cômodos de uma casa à espera de um momento de flagra indiscreto, rastro da intimidade tão ansiada por parte dos espectadores.

Acho que a única explicação que consigo vislumbrar para esse deprimente fenômeno é que o BBB é algo na moda, para discutir no bar, na faculdade, na escola e no trabalho, e simplesmente ver algo tão abjeto assim é um exercício para fomentar conversas bobas e ocupar um tempo de ócio que poderia ser usado para mil coisas mais interessantes. De qualquer maneira, acho um programa e uma tendência horrorosos.

O que é verdadeiramente lamentável é que a Cultura, o único canal de boa programação na televisão aberta, agoniza pelas sevícias recebidas do governo, de sua própria administração e também do público, esse mesmo público que diz reclamar da péssima qualidade das atrações televisivas mas que não desgruda de seu BBB diário — eles fazem que nem os participantes do BBB, pretendendo sentimento onde só existe descaso.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Abismo de um sonho

Desde pequeno eu leio muito. Não que eu seja intelectual ou um grande pensador, mas sempre gostei de ler. Gibis, revistas, livros. Por isso, nada mais natural que me interessar também por escrever; e assim, tenho desde uma certa idade uma considerável produção literária: contos, novelas, esboços de peças, poemas, além de uma grande produção de crítica de cinema, textos sobre livros, quadrinhos, música, além de posts de blogs, comentários em fóruns etc. Ou seja, sempre escrevi. Sempre mesmo.

Mas dá de repente aquela vontade de voar mais alto, de ir um pouco além; então nasceu o desejo de ser publicado. Eu já havia pensado, anos atrás, em mandar uma coletânea de contos para uma editora, mas os prazos de resposta ou eram incertos ou eram muito extensos. Então fatalmente desistia. Até que pensei: "há anos pensava em mandar originais e o tempo de demora para ter alguma definição me angustiava; mas acabou que passou um tempo muito maior de lá para cá e eu continuo sem expectativa na vida ou na carreira, por que não tentar esse sonho?".

Aí nasceu o tal projeto de que falei. Trata-se de um pequeno romance, escrito no segundo semestre do ano passado. Não é mal escrito e nem propriamente ruim, apesar de obviamente não ser uma grande literatura; mas me empenhei e, com o tempo livre de que dispus (mesmo que aos pulos e aos trancos e barrancos, com muitas interrupções), concluí o livro no final de 2010 e neste começo de ano o revisei. Estou vendo como registrá-lo na Biblioteca Nacional e assim ficar seguro quanto a plágios e outros medos que assolam todos os autores, até os fracassados como eu. Mas isso é o de menos: a aventura começa agora.

Ou mais exatamente as desventuras. Publicar um livro, se você não tem nome, contatos, influências, "pistolão" ou uma inacreditável sorte é algo muito quimérico no Brasil. O mais provável é que as editoras para as quais eu enviar o romance joguem-no fora assim que puserem nele as mãos, o que é muito desolador mas nem tanto incompreensível: com milhares e milhares de livros sendo escritos e publicados, por que lançariam logo meu empreendimento tão humilde?

E o pior não é isso. O pior é que as grandes editoras, que têm alcance, são aquelas que por último se interessariam por uma publicação como a minha; elas querem lançar os medalhões, e nós neófitos ficamos atados e só podemos nos socorrer com as editoras independentes. Que são nobres em esforço e intenção, mas ineficazes no resultado; seus livros são impressos sob demanda, eles não mandam cópias para livrarias, a literatura que investe em selos assim infelizmente é a fadada ao perecimento, com um livro assim predestinado a virar um simples bibelô, algo que alguém imprime para "provar um ponto" ou se envaidecer, chegar com uma cópia para um conhecido um dia qualquer e dizer: "olha, eu já publiquei um livro, sabia?". Não, não há como ninguém saber. É desesperador lançar-se de cara numa empresa que virtualmente irá lhe custar a vida — ou a carreira que você ainda anseia seguir.

Mas e aí como fazer? Todas as portas estão fechadas para você e não há chave capaz de abri-las; investir com um machado pode dar a ilusão de que você passou daquela etapa, mas no final das contas você chegou ao fim do jogo na porta falsa: ela não existe, é um desenho pintado na parede.

Mas eu vou tentar, apesar de tudo. É uma aventura que não me trará nada de proveito, só vai me fazer perder dinheiro, saúde, ficar ansioso, nervoso, desgostoso. Mas já deixei há muito tempo de acreditar que as coisas irão se ajeitar por si só, que tudo vai dar certo no final e que nas linhas tortas meu nome vai ser escrito direito pelo tempo e destino. Não, não posso esperar ajuda de ninguém nessa hora. Só de mim. Seja o que for.

(Certos sonhos se não realizados viram obsessões. Ou, pior, frustrações.)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Rocinante

Há cerca de três semanas resolvi perder um medo antigo e ler de uma vez por todas o Don Quijote (ou Dom Quixote) de Cervantes. O livro sempre me pareceu ser ótimo, todos comentam maravilhas dele e é considerado por todo mundo uma das melhores ficções já escritas; mas minha preguiça se devia a um problema antigo meu: sou MUITO lerdo para ler. O Quijote tem mais de um milhar de páginas, e isso me parecia muito desanimador. Mas aí tomei como resolução para o ano novo ler algumas pendências antigas acumuladas há anos. A edição do Quijote que estou lendo, a ganhei do meu pai em 2007. E vou falar: que livro MARAVILHOSO! Em todos os sentidos.

Primeiramente eu vou destacar a beleza do livro da Alfaguara, a edição em homenagem ao quatrocentenário da primeira parte do livro; além de um acabamento editorial perfeito, a edição tem mil apêndices, as portadas originais, explicações detalhadas sobre os arcaísmos da obra, um glossário extremamente completo e útil, mais o texto integral em espanhol com apontamentos que esclarecem, solidificam o entendimento e aguçam a curiosidade, aumentam a vontade de contextualizar o processo de escrita de Cervantes, suas fontes, influências, deixam claro as piadinhas de gramática, os erros (deliberados ou não) cometidos pelas personagens, as sutilezas empregadas na construção das frases, e tudo isso sem parecer intelectualóide, pedante, acadêmico (naqueles sentidos ruins), dando novos sentidos à compreensão do texto, auxiliando na busca por uma experiência completa de leitura. Vou dar um exemplo: no começo da obra, Cervantes descreve com muito detalhamento as roupas e modo de vida do nosso célebre fidalgo, e é preciso peneirar essas citações para entender como era absurdo para alguém JÁ NAQUELA ÉPOCA se deparar com o projeto de cavaleiro que era Don Quijote, que já usava roupas foras de época mesmo naquele início do século XVII, que tinha costumes assombrosos que já eram desconhecidos daquela geração etc.; sem essa ajuda, o leitor não se daria conta do IMENSO estranhamento das personagens ao encontrarem o fidalgo, e por que ele parecia sempre tão absurdamente deslocado e ultrapassado e ridículo.

Comecei falando da edição e já pulei para a história, não tem jeito; ela é tão lindamente narrada que eu, na minha proverbial vagareza, já devorei quase trezentas páginas e estou entrando na quarta e última parte do primeiro livro. Don Quijote e Sancho Panza são duas criações magníficas, donos de idiossincrasias e profundidades inigualáveis, funcionando por diversos movimentos que os fazem ser arquetípicos em praticamente todas as frontes: no idealismo, na amizade, na confiança, na ingenuidade, na iconoclastia fantasiosa, no valor, que, afinal, os dois possuíam e possuem, pois não morrerão jamais, vivendo com muita justiça a fama de serem dois dos mais famosos tipos da literatura em todos os tempos.

Por preconceitos infundados, imaginamos que, por tantas e tantas adaptações e referências, histórias clássicas assim já não possuem interesse ou nada de novo têm a nos mostrar; esse é o engano mais estúpido em que podemos incorrer, pelo menos em casos como o do Quijote cervantino, obra magnífica, estupenda, delirante, majestosa e que em todos os episódios e páginas merece o rol de elogios que o sonhador fidalgo consagra sempre à sua imagem de donzela, a Dulcinea que em verdade é Aldonza.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Pergunte ao pó

À parte algumas coisas que acabaram voltando à moda (LPs, por exemplo), eu nasci numa época divisora entre as águas da modernidade e da tradição; convivi com muita coisa impensável para as gerações que nascem agora, mas também muitas vezes só conheci essas coisas em seu ocaso. Há meses penso em sistematizar por uma simples lista a relação dessas coisas que me trazem um pouco de nostalgia e decepção por vê-las desaparecidas. Algumas delas seriam:

FICHAS TELEFÔNICAS
Os cartões também andam raros, nessa era de celulares, mas fichas telefônicas eu as tinha de reserva junto a moedas para ligar para casa em emergências, quando ninguém tinha consigo qualquer telefone móvel. O que nos leva aos dois próximos itens da lista.

PORTA-MOEDAS
Saquinhos para levar moedas e fichas telefônicas. Dava ainda para guardar Tazos (outro saudoso objeto da minha infância), chicletes, balas. Era um pesinho que as crianças e jovens e adultos carregavam com certa satisfação, ajudava um bocado. Hoje as carteiras têm espaço para guardá-las, ou simplesmente se junta uma quantidade suficiente para depois trocar no metrô, por exemplo.

PORTA-MOEDAS DE PLÁSTICO
Com divisórias para cada moeda, pelo tipo e tamanho! Nossa, isso é inesquecível. Eu tinha um azul, muito bacana, e creio ter tido um roxo também. Havia a versão "caseira", que também tenho até hoje, com um espaço bem maior (não era de bolso) e muito útil para armazenar uma considerável quantidade de moedas até que se desse a elas destino melhor.

CABINES TIRA-FOTO
Você sentava num banquinho, fazia uma pose e pronto, tinha uma foto. Podia ser sem moldura, para eventos profissionais, ou com corações, enfeites de toda sorte, para presentear algum amigo ou guardar de lembrança. Como hoje virtualmente todo celular tem câmera, também não vemos mais essas cabines em todo canto.

ENCICLOPÉDIAS
Nossa, eu achava um barato, mesmo. Pesquisava direto, folheava para ir a assuntos completamente aleatórios, lembro que cortei o dedo algumas vezes na nova Larousse que meu pai havia comprado, capa dura vermelha, uns vinte volumes. Esse simpático tipo de coleção ficou para trás com as enciclopédias virtuais, muito menos charmosas.

CARTAS
Como lamento aqui, objeto mais obsoleto hoje não há. Mas era delicioso o tempo de agonia que marcava a espera da resposta, essa falta de "instantaneidade" que hoje está extinta. E me lembro como fiquei feliz quando, moleque, recebi a primeira carta (de algumas) de João Carlos Marinho, então um dos escritores que mais me entusiasmava.

DISQUETES
Eu usei bastante isso na escola. Era mágico guardar tantos textos e tantos joguinhos e tantas coisas naquele pequeno quadrado, de cores variadas, ah, era muito legal colar a etiqueta com seu nome, escrever os nomes dos arquivos, mas quanta coisa cabia lá!, e no entanto não havia capacidade de armazenamento de nem 2MB... Como o mundo é grande quando somos pequenos!

REVISTAS DE INFORMÁTICA
Eu ficava impressionado, extasiado e muito feliz tardes e tardes jogando e rejogando e jogando e rejogando de novo pequenos releases que as distribuidoras de games liberavam para revistas e sites especializados (os célebres "demos"), decorava as músicas, descobria novas estratégias, clicava nos objetos que tinham alguma animação embutida nos menus, pegava lá wallpapers (coisa que hoje basta salvar qualquer foto do computador!), midis (!), sons engraçados, imagens do ClipArt para trabalhos escolares, entre mil outras coisas...

MÍNI-TELEVISÕES
Ideais para viagens, para dias em que acabava a luz (funcionavam com baterias ou pilhas grandes) ou simplesmente para levar para as barraquinhas (outra relíquia perdida), para o quarto, para onde se quisesse. Hoje os celulares têm televisões, a internet passa a programação ao vivo de muitos canais, no YouTube você confere o que perdeu se a luz faltou em sua casa. As simpaticíssimas míni-televisões são que nem filmes de faroeste: oficialmente ainda não estão extintas, mas é tão raro ver uma que ninguém nem se lembra mais...

Este post possivelmente terá continuação — a saudade é muita e a memória é pouca.