quinta-feira, 3 de março de 2011

Paranóia e mistificação

OK, agora chega dessa palhaçada de falar que Monteiro Lobato era eugenista. Eugenia não é o que ele defendia, não como eugenia é hoje entendida. Se ele tinha seus credos, está longe de ser racista ou defensor de uma pureza racial absurda. Não, não li O presidente negro — como de resto todos os que apontam essa obra com dedo denunciatório parecem nunca ter lido outra obra lobatiana. Não leram sua defesa do negro açoitado pelo resquício da hipocrisia social advinda com o fim da escravidão, na figura de Tia Nastácia, essa sábia que cria a vida (Emília e Visconde), como uma deusa, que aprende no medo a ter forças para desbravar o irracional, que é um acalento para o caos da modernidade do “progresso” quando estende suas mãos cansadas de trabalho duro (negro trabalha e trabalha muito) para afagar as crianças do sítio de Dona Benta ou lhes fazer doces, pipocas, contar as histórias que seus antepassados lhe foram ensinando; também não leram a tradução que Lobato fez de As aventuras de Huckleberry Finn, essa obra que é talvez um dos maiores libelos contra o racismo, a escravidão, a segregação racial e tudo isso que de podre acusam Lobato — ou quererão esses senhores lhe impingir a fabulosa pecha de ter adulterado o sentido da obra de Twain? Ou quem sabe Lobato, em sua eugenia galopante, teria usado esse célebre romance para blindar-se no escudo da hipocrisia? A ironia é que Twain também vem sendo lido por censores grotescos como preconceituoso em várias passagens desse livro; não entenderam o narrador moço ignorante (da instrução “formal”, apenas) que narra a história.

Consagrar a um escritor uma interpretação puramente literal de suas obras é a coisa mais estúpida e ridícula que alguém pode fazer, e uma escritora, Ana Maria Gonçalves, deveria ser a primeira a entender que Lobato nunca investiu no “processo de chamar negro de burro aqui, de fedorento ali, de macaco acolá, de urubu mais além”, como essa senhora afirma tão categoricamente em seu artigo.

Falta a ela, e a tantos outros apressados detratores de Lobato (como Muniz Sodré), entender que quando Emília chama Tia Nastácia de “negra beiçuda”, entre outros ataques violentíssimos, não é Lobato que condena a existência dessas “almas negras” entre nós brancos que somos ou deveríamos ser, mas é uma de suas personagens, errando, agindo mal, sendo cruel e nitidamente servindo de contra-exemplo — que o choque das expressões tão grosseiras deveria deixar inquestionavelmente explícito, mas que, pelo visto, nesse ponto Lobato falhou: Ana Maria Gonçalves e tantos outros não entenderam. Acham que haver um personagem racista num livro é racismo do autor, é obra racista. É um argumento tão grotescamente estapafúrdio que mais uma vez me surpreendo de estar aqui respondendo a esses ataques ocos de qualquer coerência.

E ainda Lobato vai além: se Emília age mal, é repreendida por Dona Benta (a dona da casa, autoridade máxima), é castigada (em Memórias da Emília, após um concerto de ofensas a Tia Nastácia, os planos da boneca de se valer de uma certa criatura angelical são frustrados e ela deve se valer apenas de sua frustração e desapontamento), é criticada (o Visconde afirma que ela é má, sem coração — Lobato eugenista criou um arquétipo bastante controverso para propagar seu racismo, parece), e, afinal, recobra a consciência moral quando percebe que cor não serve a nada, as pessoas são boas ou ruins por mil outros atributos e Tia Nastácia é um exemplo de gentileza, bondade, solicitude, sabedoria em seus modos e costumes.

Isso não é hipocrisia, isso não é eugenia, não é auto-indulgência, medo de reprovação ou receio de censura. Lobato escrevia o que queria, publicava seus próprios livros e só devia ajustar contas com as crianças suas leitoras. Das quais nunca se teve notícia que foram influenciadas negativamente por pensamentos raciais questionáveis encontrados em suas obras. O que está havendo, parece, é a eterna má vontade, preguiça e (agora sim) preconceito dos adultos. Que levam tudo ao pé da letra, que desaprenderam a contextualizar, a compreender, a “ver a vida” (como Dona Benta recomendava a seus netos), e, portanto, não conseguem ter a curiosidade, a inocência de procurar ver o que está além do superficial, do óbvio, o que as crianças faziam e ainda fazem, sempre farão. Para todas essas infelizes pessoas que só existem por preguiça de viver, Lobato ainda é pertinente e incomoda. E é por isso que ele tem se tornado maldito.

Voltando propriamente à eugenia, a senhora Gonçalves, como todo agressor que se preze, gosta de procurar argumentos nas falas e opiniões divulgadas de seu alvo de ataque. Então para ela é um pulo destacar uma frase de correspondência de Lobato como: Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente, cometer a sangue frio o belo crime que sugeri. E ela então se acha na razão, comodamente esticando os dedos ante a vitória contra a literatura de sugestão; mas quem sugestiona o leitor é ela, quando não o lembra do inescapável humor de Lobato, ao reputar sérios chistes como “o belo crime que sugeri”. E o que dizer de Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros? Chega a dar pânico saber que tem gente que entende isso da maneira literal.

Não cansada, ela remonta a batidíssimas lembranças da relação de Lobato com Renato Kehl, como se admiração ou amizade fossem provas de qualquer desvio de caráter. Ora, os milhares, potencialmente milhões, de fãs da conduta “transviada” de Charlie Sheen, que o seguem nas redes sociais e citam divertidos seus feitos, essas pessoas estarão se confessando usuárias de drogas, amigas das farras, das orgias, do “misbehavior”? Faça o favor, senhora Gonçalves. Uma conclusão tão absurda quanto me desconcertam as centenas de comentários de seus seguidores no final do texto indicado acima, repleto de “macaquismo” — que eles entenderão como uma expressão racista, apesar de ser evidente que me refiro aos animais que gostam de seguir e imitar outros animais —, desinformação da pior espécie, como criticar ou “deixar de gostar” sem se prestar a descobrir e buscar fontes e materiais por conta própria. Pensar com a cabeça dos outros gera só um pensamento.

Pretendendo desmistificar um ídolo, Ana Maria Gonçalves mostra-se desesperada por atenção, como ao agregar à sua crítica elementos que nada têm a ver com a discussão: o caso do Jeca Tatu no Biotônico, época em que a publicidade no Brasil ainda era testada e não se pode hoje analisar essa experiência como sendo mais do que o que ela foi, ou seja, um experimentalismo. Extrair daí qualquer conclusão sobre o caráter de Lobato e suas intenções com suas obras é fazer uma ponte inimaginável, construída com tijolos inventados, e que, logo, não leva a lugar algum — o que se repete com a investigação tendenciosa que faz de certos destinos comerciais de obras do Ziraldo, e até um comentário totalmente deslocado sobre o Simonal —; o texto inteiro segue o mesmo iter: não possui lógica para se manter, mas fala bonito aparentando preocupação com um assunto do qual não possui referenciais para falar: citar ao acaso trechos que comprovam seus complôs forjados é o mesmo que apresentar aos amigos um cachorro que você disse a eles que sabe falar o próprio nome, e após os latidos do bicho dizer que seu nome é “Auau”. É engraçado, mas não deveria passar de uma piada. E o texto é trágico porque é enxergado com uma preocupação de verdade que não possui e não tem como possuir, pois é perfeitamente frágil em sua estrutura de acusação infundada.

O parágrafo continente da frase Afinal, há quem diga que não somos racistas. Que quem vê o racismo, na maioria os negros, que o sofrem, estão apenas "macaqueando" (e seguintes) é uma pérola da pernóstica refutação de argumentos moldados pelo contra-atacante, argumentos que nunca foram propostos pelo alvo da vez (seja Lobato ou Ziraldo ou quem for o “bode expiatório”, como Ana Maria Gonçalves reitera), coroados pela percepção reducionista de que Lobato seria um dos escritores mais racistas e perversos e interesseiros que o Brasil já teve, uma exposição macabra que joga o cesto de maçãs inteiro no lixo porque uma delas, segundo quem a observa na contra-luz, está podre. E aí Lobato é medonho racista e eugenista, mas todo o bem que ele fez para as crianças, para o aperfeiçoamento da didática, para a modernização do sistema educacional brasileiro, tudo o que ele fez para trazer mais livros bons para as crianças negligenciadas no Brasil de então (Carroll, Kipling, Twain, London, todos esses admiráveis autores ele os trouxe para cá, traduzindo e publicando essas obras com seus próprios recursos), tudo o que ele fez para a indústria do livro e, voltando às crianças, tudo o que ele fez para incutir em seus jovens leitores o gosto pela leitura, pelo conhecimento e por uma profundidade que não era esgotada — ele nunca pretendeu isso — em seus livros, e isso sem falar na fatigante luta pelo petróleo e pela saúde nas áreas rurais, bem, tudo isso é descartado sumariamente, pois quem vai dar a suas crianças um livro de um dos escritores mais racistas, perversos e de interesses escusos? Ana Maria Gonçalves presta assim um desserviço a qualquer coisa que teoricamente defende, mostrando-se incapaz de separar o joio de seu trigo alegado (nisso Muniz Sodré acerta, ao menos em parte).

Mas eu paro aqui. Não tenho interesse em chamá-la para um embate, não quero luzes para mim, não me pretendo centro das atenções e com certeza não tenho intenção de discutir (com) alguém que não sabe que na vida existe humor, contexto, sarcasmo e tantas outras armadilhas da língua para sermos apanhados em nossos vis desejos de literalidade. Tampouco quero prosseguir nos meus desagrados com o texto da senhora Gonçalves, tanto mais que ele incorre em tantas incorreções e inverdades (até raciais, diria, pregando subliminarmente uma espécie de racismo inverso) que não tenho qualquer recompensa em debater uma a uma as dezenas de problemas que tenho com ele.