terça-feira, 26 de abril de 2011

Fim

Quando as coisas acabam, elas deixam uma marca indelével na gente.

Eu estou no fim da leitura de Don Quijote, a menos de cinqüenta páginas do término, e a sensação é dúbia: por um lado sinto-me extremamente feliz por ter lido uma obra tão linda e fascinante, e por outro é como se eu estivesse deixando uma parte de mim com a leitura. Acompanhei durante mais de três meses os devaneios do fidalgo e seu escudeiro, os dramas e comédias de que foram vítimas e também a vida de mil pessoas com que se depararam. E aí acabo assim, numa semana qualquer, já pensando no próximo livro a ler. Don Quijote morto mas imortal.

Também sinto-me estranho com o fim das relações, quando elas desaparecem desse modo inesperado. E um amigo se vai, outro o substitui, a gente vai vivendo, se acostumando com as ausências e tentando acreditar que a memória é suficiente para dar cabo dos momentos de agonia e torná-los felizes com as recordações de antigamente. Da mesma maneira que trabalhamos anos a fio em um prédio, nos realojam em outro edifício, outro bairro, e naquele antigo lugar de trabalho ficou um pouco de nossa História. E como isso pode ser recuperado?

A verdade é que precisamos a todo instante de paliativos para os sofrimentos que podem comprometer nossas vidas, remédios para as pequenas ou grandes infelicidades cotidianas. Então consumimos arte, saímos, conhecemos outras pessoas, mudamos de emprego e vamos estudar em outro curso ou faculdade, tentando um dia se ajeitar no definitivo e largar de vez o provisório; e vamos claudicando, batendo a cabeça, com os olhos meio inchados pelas lágrimas em vão repelidas das oportunidades perdidas, e tentamos ir em frente.

E aí cada vez mais eu me assombro com a sabedoria dos fabulistas, quando me lembro do diálogo entre o trabalhador e a morte narrado por La Fontaine:

Velho, caindo sob o peso de um feixe de lenha: — MORTE, morte, por que não me escutas?... Venhas logo, já não agüento mais, estou cansado...
Morte, aparecendo aterradora: — Que desejais, velho?
Velho, assustado: — Quero que me ajudes a recolocar a lenha nas costas.

Porque no fim das contas ninguém quer de verdade que tudo acabe de repente.

domingo, 10 de abril de 2011

Quixotadas

Seguindo na leitura de Don Quijote, o caráter insólito de várias personagens me chama a atenção. Há alguns fenômenos peculiares que ocorrem com elas, e isso lhes dá uma dimensão muito particular. Alguns exemplos:

- Todos que zombam de Don Quijote gostam de ridicularizá-lo tratando-o por grande cavaleiro e a Sancho por exímio escudeiro; mas, velados na sua hipocrisia, favorecem a imaginação dos dois companheiros, e assim acabam tratando-os melhor do que se simplesmente desmentissem seus credos. Há uma cena na casa de duques, em que Don Quijote e Sancho são levados a crer, de olhos vendados, numa farsa de artifícios teatrais; não desconfiando da peça que lhes é pregada, eles terminam a tarefa com grande alegria por fazê-la chegar ao bem sucedido término. Então eu questiono: o que fizeram a eles é moral? Porque no final das contas eles ficaram muito satisfeitos, e cônscios do valor de sua jornada e ação.

- Quando Don Quijote se depara com algo desconhecido ou inexplicável, começa logo a falar dos encantadores perversos que o perseguem. O que pode parecer simples fantasia é na verdade a maior das coragens: reconhecendo como verdadeiro apenas aquilo que se lhe parece como tal, Don Quijote enfrenta o desconhecido com ânimo reforçado, como a dizer: "certas coisas encantadas não posso vencer; as demais, enfrento de peito aberto e valor posto à prova".

- Os delírios de Don Quijote não me parecem ser tanto fruto de loucura, mas de uma percepção distorcida da realidade. No fim das contas, ele de fato tenta consertar os tortos do mundo e ajudar aos necessitados, mesmo que para isso corra o risco de sofrer a incompreensão do mundo que o julga anacrônico e estapafúrdio. Mas o que é mais errado, ser um cavalheiresco cavaleiro andante numa época errada ou ser injusto, vil e sórdido como todos que se divertem tratando-o como uma aberração digna de risadas?

- Sancho por vezes tem seu amo como louco, outras vezes é reputadamente tido por muitos como ainda mais fora do juízo que seu mestre. Mas para qualquer efeito ele está sempre a postos, e é injusto tratá-lo como um simplório mentecapto, quando ele demonstra crescer a cada aventura, até falando de maneira mais polida, sonhando com grandeza, trazendo a lógica humilde da vida prática a situações que são descritas de maneira tão ímpar por Cervantes que somos até gratos a Sancho por ele nos lembrar que nada é o que parece (ainda que ele mesmo acredite no contrário, por vezes, como no caso do singular encantamento de Dulcinea).

- Há que se destacar a beleza inesperada dos conselhos que Don Quijote dá a Sancho quando o fiel escudeiro está prestes a finalmente tornar-se governador de uma ilha.

Minha leitura acaba provavelmente no fim do mês. Mas tudo isso cavalgará comigo para sempre no Rocinante imortal da minha lembrança.