quarta-feira, 28 de abril de 2010

Cahiers

Eu evito falar de cinema aqui, por várias razões: primeiro porque já falo suficientemente de cinema em comunidades virtuais (então aqui é o espaço para falar de literatura, música, quadrinhos, da vida etc.); segundo porque escrevo regularmente para a revista Zingu!, publicação voltada ao cinema brasileiro mas que eu sempre corrompo com minhas observações nada pertinentes sobre cinema europeu e polêmicas vazias. Mas hoje resolvi publicar neste blogue uma pendência antiga com mim mesmo: a entrevista que fiz com Carlos Reichenbach. Naturalmente a entrevista não foi apenas minha, mas transcreverei apenas a minha breve participação (que foi justamente na parte final); a entrevista "oficial" e o dossiê sobre o Carlão saíram em uma das últimas edições da Zingu!, mas não me agradou a edição do bate-papo — a meu ver desnecessariamente impiedosa —, e afinal de contas o que mais gosto em entrevistas é a espontaneidade, o caráter de resposta-pronta, interatividade: o trecho a seguir tem tudo isso, e ainda pensarei em depois disponibilizar o áudio desse encontro. Não quero com isso qualquer tipo de auto-promoção, até porque nunca ganhei tostão algum escrevendo o que seja — quero apenas disponibilizar essa trabalhosa transcrição; sem mais delongas, eis o mais longo post da história deste blogue:

Gabriel [Carneiro, editor da Zingu!]: Vamos encerrar? Mais alguma pergunta?

Filipe: [Para Reichenbach] Só queria perguntar quais diretores você despreza, os “tapeceiros”... Eu sei que você não gosta do Michael Haneke, queria saber outros cineastas de que você não gosta.

Reichenbach: Haneke é nazista, só isso.

Filipe: Nazista? [Ri]

Reichenbach: Não gosto do Wong Kar-Wai, por exemplo.

Gabriel: Ah, Kar-Wai é muito bom!

Reichenbach: Bom? Bom pra quem?

Gabriel: Ah, o 2046 é maravilhoso, Carlão!

Reichenbach: Você está louco. Eu não suporto esse cara. Gosto é gosto!

Filipe: Eu também queria perguntar se o Cronenberg se ajusta nessa definição que você falou de “mostrar um filme sobre a violência, mas não compactuar com ela”; porque os filmes do Cronenberg são muito violentos, mas para mim é claro o posicionamento de que ele é um pacifista.

Reichenbach: A diferença dos filmes do Cronenberg, o que torna ele um dos maiores – a meu ver talvez um dos três grandes em atividade (indiscutivelmente há três grandes cineastas), não importa o primeiro dia no cinema, o dia em que entrar filme do cidadão... [Nota: aqui, Reichenbach quis dizer que não importa o dia da estréia dos filmes desses diretores, ele estará lá.] Martin Scorsese, Cronenberg e Brian De Palma. Mesmo quando erram – e erram pra valer [rindo] – são de tirar o chapéu, deixa eles errarem, vão acertar na próxima. O que marca o Cronenberg é que ele cria um universo e uma geografia muito pessoais, e se você levar à risca, ele cria uma metáfora. Não acho que ele faça filmes sobre violência. Sabe que eu fui o primeiro brasileiro que entrevistou o Cronenberg? Pra Folha de São Paulo, pro Folhateen. O primeiro, e a porra da editoria me bota um título lá que me deu uma raiva desgraçada: “O mestre do nojo”. Porque era a época de A mosca.

Filipe: O mestre do nojo é o Sady Baby [ri].

Reichenbach: Enfim, fui o primeiro que assumiu que gostava desse cara. E quando eu estava na Holanda, teve homenagem a ele, e eu vi tudo, Stereo, aqueles primeiros filmes... E eu levantei isso no debate, que eu acho que ele faz filmes sobre dor. O grande tema dele não é a violência, mas a dor.

Filipe: Mas é que também a dor física, e aí nisso vai um pouco da própria violência. [Reichenbach: Ah, sim, claro!] Principalmente nos filmes mais recentes dele, que o pessoal diz que são mais “limpos”, e eu não acho que são limpos, mas de qualquer modo... É porque eles vêem a superfície, e eu acho que o seu cinema também tem muito disso, uma coisa meio Claude Chabrol, ele pega o exterior da coisa, digamos, o Hitchcock, e o interior, que é o Fritz Lang. E o pessoal diz: “não, porque são filmes limpinhos, agora não tem gore e não sei que mais”, e eu não concordo com isso. Eu queria saber o que exatamente isso tem, se é uma coisa ocasional, sai por acaso, esse tipo de estética mais “interna”, não sei se é proposital...

Reichenbach: Quem definiu ele bem foi o Martin Scorsese, que falou que ficou muito impressionado com um daqueles primeiros filmes do Cronenberg, não me lembro qual, acho que foi com o filme que ele fez com a Marilyn Chambers [Nota: O filme é Rabid – Enraivescida na fúria do sexo], que é sensacional, por sinal. Aí convidou o Cronenberg pra casa dele, disse que gostaria muito de encontrá-lo, ficou entusiasmado. Quando abriu a porta, disse que pensou que ali havia uma pessoa que tinha se enganado de endereço, parecia um médico obstetra, um cara de paletó e gravata, de óculos [ri]! Eu fui num jantar, foi no ano em que fui acompanhando a produção de um filme estrangeiro chamado City life, co-produção com a Holanda e tudo; aí teve uma hora que todo mundo foi jantar num restaurante indiano, onde servem um prato coletivo, todo mundo em volta de uma mesa, um monte de pratinhos de arroz com um monte de coisinhas diferentes, e fica aquela coisa rodando, e você pega do prato de um, de outro... O Cronenberg foi para uma outra mesa comer separado, ele não conseguia misturar! O cara é muito louco. Ele não podia conceber pegar com o garfo dele a comida que você tinha botado no seu prato. Aí a gente estranha, o cara faz aqueles puta filmes nojentos... [ri]

Filipe: A gente pensa que o cara é o total pirado, mas na verdade é um sujeito certinho, tranqüilo...

Reichenbach: Parecia um médico obstetra! [rindo]

Filipe: É verdade, e inclusive ele fez um, em A mosca ele era o ginecologista da Geena Davis.

Reichenbach: Mas na hora de botar os demônios pra fora, ele bota! No fundo, os últimos filmes dele são mais wellesianos. O Welles dizia: “não consigo separar política do crime”. É o vértice mais wellesiano do cinema do Cronenberg. São mais políticos esses filmes, o crime é quase um partido, uma organização, uma estrutura quase hierárquica. Isso é o que é fascinante nesses filmes. Aqueles planos estranhos, A marca da maldade, aquele abertura, atravessa uma fronteira inteira, vai explodir um carro lá na frente... Deu pra sentir essa coisa de lentes deformatórias, sobretudo as bifocais – o De Palma é o grande mestre em usar isso, ele bota o cara em primeiro plano e tem outro lá atrás em foco, como tinha em Cidadão Kane... Por conta de preparar a minha “cinemateca”, vou ter que comprar outro HD, cada vez tem menos espaço, já tive que apagar uma pasta inteira de mais de setenta filmes para poder abrir espaço para tantos filmes, porque o intuito é de continuar mantendo esse material de pesquisa na mão, porque se algum dia me torna viável fazer o Cinema interditado... Só concluindo a história, depois de quatro anos e meio, o produtor chegou à conclusão: “Olha, vamos fazer as contas”, e acertou com um cara a compra dos direitos autorais. Essa série de filmes envolvia [ininteligível] Castro, Maomé, até filmes mais ardidos mesmo, filmes do Joseph [ininteligível], primeiro filme onde tem DP dupla – o que é um contrasenso, Dupla Penetração dupla –, as câmeras de tabus, de repente tinha que comprar um filme alemão horroroso, mas tinha que ter, senão ia ficar faltando. E é duro você trabalhar num material onde você deixa de falar alguma coisa por uma questão de censura, não pode ter censura. Todas as aberrações que o cinema já aprofundou, ou que existem, ou que tem uma ramificação lá dentro que é dedicada isso, eu fui obrigado a tratar. Vi cada coisa que você não imagina. Sabia que tinha aberrações de zoofilia, necrofilia, mas algumas coisas eu pensava como o ser humano pode chegar a esse ponto, atração à merda... São coisas que a gente só sabia no Teatro da Agressão, no material, claro, do Otto Mülh, que trabalhava isso de forma ritualística. Sabe quem é Otto Mühl?

Filipe: Só de nome.

Reichenbach: Nunca viu? [Filipe: Não, nunca vi.] Pois é, tem que ver! E isso você baixa de graça, inclusive pode ver no Museu Otto Mülh, são filmes de três, quatro minutos, fácil, rápido. Você viu Sweet movie?

Filipe: Do Makavejev? Vi.

Reichenbach: Nesse filme eles não levam a moça lá pra morar numa comunidade, que fica cagando no meio de um negócio lá?... É Otto Mülh! É a comunidade do Otto Mülh!

Filipe: É daquele jeito? É que eu tenho uma relação meio de amor e ódio com o Sweet movie, então...

Reichenbach: Mas é maravilhoso! Esse obviamente está no meu arquivo.

Filipe: Na seção de honra...

Reichenbach: De honra, esse filme é um exercício de liberdade. Especialmente as conseqüências, quem viu não acreditou, é um festim. [Filipe: É uma entrega.] Quando ele vai morar na comunidade do Otto Mülh, é um festim aquilo, você lembra dessa seqüência? [Filipe: Lembro.] Uma das cenas mais interessantes e mais bonitas que eu já vi, o desespero da mulher.

Filipe: É, o que eu penso do Cronenberg é meio o que acontece com o próprio Makavejev, que fazia um cinema mais “libertário” e só passou a ser mais aceito, referenciado em revistas e tudo, quando passou a adotar um padrão estético mais “comportado”, como aquele The Coca-Cola kid. O próprio Cronenberg sempre foi um sujeito muito sério e centrado, mas ninguém levava a sério, porque tinha esse tipo de coisa...

Reichenbach: Mas o Makavejev não foi descoberto aí, ele foi descoberto nos primeiros filmes.

Filipe: É verdade, eu tenho uma Cahiers du Cinéma bem antiga sobre ele.

Reichenbach: Um caso de amor, por exemplo, que é uma obra-prima.

Filipe: Mas o estilo mais famoso dele...

Reichenbach: É que ele acabou na verdade tentando fazer uma carreira internacional também, e fez um filme até com muito sucesso, Montenegro, que é um filme libertário, mas é um filme policial.

Filipe: O que eu penso é que o próprio cinema brasileiro sofre um pouco dessa incompreensão, está cheio de gente para quem eu indiquei Falsa loura que diz: “Ah! Filme com Maurício Mattar e Cauã Reymond? Nem vou ver!” E não vêem.

Reichenbach: É o preconceito contra o filme popular.

Filipe: O preconceito que nasce de fora do filme, não de dentro, isso que eu acho engraçado.

Reichenbach: Vou te contar, originalmente, a primeira opção minha, desde o começo, desde o início, quando imaginei fazer esse filme, sabe quem era, para ser o ator? Antes da atriz, antes de qualquer coisa, sabe quem era?

Filipe: Maurício Mattar?

Reichenbach: Não! [Filipe: Quem?] O primeiro ator que me veio à cabeça, eu quis fazer o filme com ele, encontrei dez pessoas que me falaram: “Não faça isso, você é louco, você não vai conseguir, o cara dá problema, o cara é problemático...” E eu: “Você não está entendendo, esse cara é o novo Marlon Brando!” O cara acabou de ganhar um milhão de reais...

Filipe: Dado Dolabella? [Reichenbach: Dado Dolabella.] Caramba!

Reichenbach: É o primeiro ator que eu queria de qualquer jeito para fazer esse filme. [Filipe: No papel que ficou com o Cauã Reymond.] Pois é! Porque ele canta, inclusive. Falei: “Já está feito!” Ele é o novo Marlon Brando! Você pode não gostar, mas ele é o novo Marlon Brando, indiscutivelmente. Que pena não ter feito o filme com o cara [ri], ele está com a popularidade lá na casa do cacete! Falaram: “Vou te criar problemas”, entendeu? A mulher que era produtora de elenco – estou te contando entre irmãos, hein? Não vou dar nomes agora, hein. [Filipe: Não vamos publicar isso! (ri)] Pessoas me falaram: “Não bota esse cara, ele vai dar problema pra chegar até o fim, o cara vai sumir, vai fazer baile de debutante e te largar na mão”. Porque foi a primeira pessoa que quis chamar pra fazer, tem que ser um ídolo, com cara de mau, jeito de badboy, não tinha ninguém melhor. Como tipologia, eu digo.

Filipe: Mas você chegou a convidá-lo?

Reichenbach: Não, não deixaram eu chegar! Disseram que era tão problemático que não dava. Ele é essa imagem do Nicholas Ray, Juventude transviada, seria perfeito não tem nem o que fazer! É só fazer o cara aprender a música e fazer o cara aparecer lá como ídolo! Você esbarra às vezes no próprio convívio. Quando eu fui chamar o Cauã, ouvi muitos “Você está louco!”. A primeira coisa que ouvi sobre o Cauã foi uma coisa horrorosa, uma baita mentira, na verdade. [Filipe: O que era?] Diziam que era o nariz mais caro do Rio de Janeiro. As razões são óbvias. Mas o cara nem chega perto disso! Se ouvir tudo o que falam... O grande prazer é quebrar esses tabus. É um prazer enorme. Eu e a minha produtora de elenco gostamos de brincar com isso, falei: “Vamos chamar a Suzana Alves pra fazer o teste”, e ela: “Pode chamar! Vai fazer o teste!”. Porque quando fiz Garotas do ABC, minha produtora de elenco já a tinha me indicado, aí várias pessoas falaram que não iriam levar a sério. Mas é uma grande atriz, trabalha com o grupo do Antunes Filho... Essa barreira do preconceito é uma coisa pavorosa, mas o prazer é quebrar essa barreira. No Filme demência resolvi pegar uma jurada do Silvio Santos. [Filipe: A Flor] E falei para ela que a personagem dela era uma homenagem à Dercy Gonçalves do início da carreira. E ela fez magnificamente, e me ajudou pra cacete, ela conseguiu botar duzentas pessoas caladas. Aliás, duas mil pessoas, fomos filmar em Osasco, você pode imaginar o que é filmar em Osasco de noite em um bar com as portas completamente abertas. No primeiro dia tinha trinta pessoas, no segundo, cento e cinqüenta, no terceiro, duas mil pessoas que não calavam a boca. Já tinha que gravar um cara tocando piano com um halterofilista fazendo evolução lá na frente [rindo], quem conseguiu calar essas duas mil pessoas? Ela: “Meus queridos, façam silêncio, o maestro vai tocar”. Ela conseguiu fazer duas mil pessoas ficarem quietas! Depois pediram e ela deu autógrafo pra todo mundo. Ela salvou minha vida ali! [Rindo] Foi a filmagem mais emocionante que já vi na vida, porque você pode imaginar o que duas mil pessoas falaram com o halterofilista lá na porta. [Ri de novo] O cara era Mister Universo. E ela lá: “Querido, querido...” Na hora de filmar o maestro, foi inacreditável, o maestro parecia um estivador, parecia que ia levar o piano embora, aí senta e toca como uma menina, uma exímia pianista, a delicadeza de uma mulher, e ele tinha uma mão mais grossa que a minha! A idéia era essa, achar o sublime onde você menos espera. O sujeito fazendo evoluções junto com a música de Debussy, uma coisa completamente estapafúrdia... Na hora de rodar, um silêncio tumular, e o homem começou a tocar. Na época a gente tinha que rodar o plano inteiro porque ia tocar a música toda. Tinha duas câmeras montadas, depois iam fazer os corte, as inserções. E a gente rezando: “Pelo amor de Deus, que ninguém grite, que ninguém toque a buzina...”. Tinha som direto, mas uma câmera só que não fazia barulho, não podia passar um caminhão, um ônibus, já tinha gente segurando os ônibus que passavam, sempre tem um idiota que vai tocar buzina, e a gente ficava rezando: “Tem que dar! Tem que dar! Não pode ter barulho”. Silêncio lá fora. Quando o maestro começou a tocar, eu mal consegui vê-lo. Só o maestro tocando, duas mil pessoas paradas na rua, num bar de esquina. Você dá um “Corta!”, ele não escuta. Estava todo mundo extasiado vendo. Desliguei a câmera, estava emocionado, duas mil pessoas lá dentro. Aquele povo inteiro de Osasco aplaudindo e o maestro tocando. Tinha gente que acho que nunca tinha ouvido Clair de la lune do Debussy na vida!...

Filipe: Não naquelas condições, pelo menos.

Reichenbach: Aquele homem enorme, imenso, lá dentro, parecia um urso [ri], tocando com a delicadeza de uma menina! Uma coisa absolutamente emocionante. Aí me perguntaram como nasceu isso. Um ano atrás eu tinha assistido a um show de vanguarda e lá aconteceu exatamente essa sensação, era um evento chamado Festival de Música Nova e realmente tinha um piano de cauda lá, tocavam nele uma música brega, barulhenta, e entra ele [esse personagem de Alma corsária]. Eu te juro que pensei que fosse um funcionário da casa, que ia tirar o piano para colocar outro instrumento! [Ri] O cara senta e toca Debussy! Eu tinha que usar isso, nunca vi delicadeza tão grande. Mas no filme a gente botou o cara como estivador, suado, pra não passar pela cabeça que o homem iria sentar no banco e transformar aquilo num momento de magia. Mas na hora da filmagem, duas mil pessoas aplaudindo o maestro espontaneamente! Se isso aconteceu, a seqüência está ganha. A gente sentiu na hora que era a seqüência-chave do filme. A platéia não vai levantar antes do maestro. No final da seqüência entendemos que o filme iria ganhar. E transmitir isso é legal, quebrar preconceitos, o jogo também foi esse. A existência dessa seqüência foi um pouco por esse caminho.

Filipe: E fazer um filme bom é uma recompensa por essa busca.

Reichenbach: Ah, sim. O problema nem é fazer um filme bom, mas procurar pelo menos meia dúzia de pessoas que entendam o que está na tela! O grande retorno que você tem é encontrar o interlucutor onde você menos espera, seja aqui, na Conchinchina... Uma vez fizeram uma retrospectiva numa cidade parecida com São Bernardo, passaram Dois córregos numa sessão especialmente para alunas de cinco escolas públicas. Todas meninas com idades das protagonistas do filme, o mais belo debate de que já participei na vida, acho que o filme foi feito sobre elas, elas entendiam coisas que o espectador no Brasil não entende. É a intimidade, você lida com os sentimentos etc. O retorno maior é achar essa interlocução onde você menos espera. E acho interessante que se discuta sobre o que, num determinado momento, torna um filme maior ou menor. Como o filme pode ser devidamente compreendido, valorizado, a partir do momento em que você vence as suas limitações de tolerância. Às vezes me pergunto por que gosto de um filme; por que gosto do Joe D’Amato? Nem vou me aprofundar nessa questão, eu gosto do Joe D’Amato como gosto do Oswaldo de Oliveira! Da mesma forma. Pode ser um dos caras que entendem de cinema profundamente, aprendido na vida, na prática do cinema. Bonito um documentário do Gallante em que ele diz que, sobre Oswaldo de Oliveira, que conheceu “pouca gente que entendesse tanto de cinema”. E é verdade. Era um cara que não aprendeu a linguagem cinematográfica nos livros, foi na prática do dia-a-dia. O Joe D’Amato foi a mesma coisa, também foi fotógrafo, era um homem mais “tosco”. Nas entrevistas sobre ele, os atores falavam que não gostavam dele, não sabiam que filme iriam fazer, mas que iam trabalhar com ele pelo prazer de filmar com ele, as pessoas se sentiam muito bem de trabalhar com ele, ele era de bem com a vida. A Laura Gemser quando resolveu parar de fazer cinema, deixou de ser atriz para ser figurinista do Joe D’Amato, ela poderia fazer o que quisesse, virou uma mulher mítica, até tinha aquela brincadeira, ex-Miss Java [“mijava”], é verdade, ela foi Miss Java. Dizia que o D’Amato era um homem que conhecia cinema profundamente e uma pessoa muito prazerosa de se trabalhar com, o tempo inteiro se divertindo, ela não queria mais ser atriz mas gostava de figurinos, e pediu a ele para ser sua figurinista. Foi figurinista dele em mais de dez filmes. [Incompreensível] Todo mundo gosta! Sempre digo que é o melhor filme péssimo que já vi. Mas não se leva a sério. O D’Amato não se pode levar a sério. É um filme tosco, muito bem filmado, em alguns momentos lembra inclusive A ilha dos prazeres proibidos, tem uns planos de carros passando pela cidade, muito engraçado. Mas você percebe que existe um alto astral, não pode ser babaca e falar: “ah, que história boba”, você tem que se divertir! Eu ria pra cacete com os filmes do Mojica, adorava, me dava muito prazer de ver. Aí você entende por que o cara é capaz do melhor e do pior. Que nem Jesus Franco, o caso mais notável que já conheci, o homem que mais fez filmes no mundo, um dos, acho que o D’Amato acho que fez mais. Mas o Franco fez mais de trezentos e tantos filmes, ele fazia três filmes ao mesmo tempo. Um dia você tem que entrevistar um cineasta português que mora no Rio Grande do Sul, estou cobrando, vale a pena, ele foi assistente do Jesus Franco. Eu descobri isso sem querer, ele escondia, mas aí eu fui conversar com ele e ele abriu o jogo. Um dia que você for pro Festival de Gramado... Ele é um português que fez dois longas-metragens, um dele se chama O homem que deve morrer, interessantíssimo, ele foi amigo pessoal e assistente do Nelson Pereira dos Santos em Memórias do cárcere. Ele foi assistente do Jesus Franco, o homem que mais filmes fez na face da Terra. Trezentos e sessenta filmes, ou o que seja: trezentas e cinqüenta merdas, dez obras-primas. Quem fez trezentos e sessenta filmes pode muito bem ter feito trezentos e cinqüenta merdas, mas pelo menos umas cinco ou seis obras-primas, como bem diz o Albornoz, e inclusive um filme que hoje já é mesmo um clássico do cinema, Vampyros lesbos. Ele tem fãs incondicionais, no mundo todo, tem sites e blogs dedicados a ele, gente apaixonada. Obviamente também estaria no Cinema interditado. Ele fazia aqueles filmes sobre sexo mesmo como resposta à ditadura do Franco, a briga dele era com o Franco, o ditador.

4 comentários:

  1. Como assim, desnecessariamente impiedosa?

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  2. Só para constar que o questionamento anônimo não é meu.

    Acho ótimo que tenha publicado aqui.
    São diferentes espaços, com diferentes propostas.

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  3. Sem dúvida, Gabriel. Eu comentei com você na época que não gostei muito de a entrevista ter ficado tão "enxuta", então não creio ter parecido algum tipo de traição eu ter publicado isto aqui; até porque eu só coloquei mesmo a parte em que apareço, que é uma pequena coisa pessoal minha, achei legal e válido dividir isso com quem se interessar. Acabei mandando o link pro Carlão também. De qualquer modo você sabe que eu prezo seu trabalho de editor, já te disse isso em várias oportunidades; mas publicar essa entrevista na íntegra eu devia a mim mesmo desde outubro, e já havia prometido a alguns amigos meus.

    Anônimo, eu disse impiedoso porque uma publicação jornalística "poda" esse tipo de espontaneidade, interatividade, hesitações etc.; o objetivo é ser, bem, objetivo. Então este post vale como complemento. E o "desnecessário" foi porque eu não penso como editor, sou meio Jacques Rivette, colocaria tudo que foi dito, mesmo com imprecisões, equívocos ou erros (o que um editor não faz).

    E obrigado, Suelen! :)

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