Novamente me impressiona o quanto o vasto acesso aos meios de informação não só não nos torna mais sábios como parece justamente surtir às vezes efeito contrário; a vítima da vez é o sempre genial Monteiro Lobato, com uma polêmica tão imbuída de interesses obscuros que nem sei se dá para classificar de "politicamente correto" apenas. Na verdade, creio que é simplesmente falta de leitura; caso se detivessem na obra, entenderiam que quando Lobato escreve "Não é à toa que os macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens.", não está em absoluto sendo preconceituoso com homens da cor negra (aliás, é uma interpretação tão absurda que não sei por que perco meu tempo a comentando); é óbvio e cristalino que é um comentário desgostosamente irônico sobre a natureza HUMANA, essa raça que não se controla também para ESCREVER bobagens, como bem prova essa abjeta tentativa de censura — aliás, talvez se buscassem as inspirações de Lobato veriam que Kipling também discute a natureza expansiva do comportamento dos macacos, sem nunca também ser racista ao fazer o tal paralelo com os homens.
É de buscar pêlo em ovo que se trata. Tia Nastácia é um dos personagens mais positivos que conheço. Ela é ignorante (no sentido mesmo de "falta de instrução"), supersticiosa, medrosa. Mas ao mesmo tempo, ela é assim por criação, por falta de oportunidades; e, forte como é, faz do desconhecido um impulso para a obtenção do conhecimento: ela perde o medo e passa a entender mais completamente a realidade das coisas que estão à sua volta. Lembro particularmente de um trecho de Reinações de Narizinho em que ela se depara com o Burro Falante, animal capaz de assustar qualquer pessoa comum: ela fica apavorada, por muito tempo não se aproxima, acha que é coisa do tinhoso e por aí vai; mas depois ela convive, ela fala com o educado quadrúpede, ela vê que nem sempre o que dizem que está errado de fato é errado, pecaminoso, ruim, mau. Ela e o Burro Falante ficam grandes amigos, trocam confidências, proseiam animadamente. Isso é um desenvolvimento sutil e brilhante de personagem.
Claro que aos ignorantes do governo não interessa entender o contexto da obra e nem observar o tratamento irreverente que Lobato consagra à discussão racial, ele que foi talvez o primeiro a dar voz às crendices do povo e a considerá-las parte integrante de nossa cultura, e não um folclore pagão, imoral e primitivo. Há em sua produção infantil um livro dedicado a esses relatos, intitulado justamente Histórias de Tia Nastácia. Ele nunca foi racista como tentam pintar, não há em suas obras qualquer desprezo ou menosprezo por etnias diferentes da sua, por outros povos — vide Aventuras de Hans Staden, em que Dona Benta comenta muito propriamente que o português é a língua mais bonita do mundo para quem o fala, sendo o italiano a língua mais bonita para quem a fala, o francês, o árabe, o japonês etc. —, e nem fazia pouco de outros pensamentos, aliás, Emília é a iconoclastia em pessoa.
Antes de dar minha opinião sobre as razões desse ridículo debate, os dois lados:
A FAVOR DO VETO AO LIVRO
Autor da denúncia contra o livro de Monteiro Lobato à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, Antonio Gomes da Costa Neto diz que a obra "ensina" a ser racista e que falta preparo aos professores para lidar com o tema. Costa Neto é servidor da Secretaria da Educação do DF e mestrando da UnB (Universidade de Brasília) na área de relações raciais.
Folha - Qual o problema em relação ao livro?
Antonio Gomes da Costa Neto - Os professores, no dia a dia, não têm o preparo teórico para trabalhar com esse tipo de livro. Então, não é que ele deva ser proibido. O que não é recomendado é a sua utilização dentro de escola pública ou privada.
Quais são as marcas do preconceito racial no livro?
O livro deixou para trás as regras de políticas públicas para as relações étnico-raciais. Há estereótipos nas personagens como a Tia Nastácia e os animais. Todos os animais são relacionados à cor negra com preconceito. Sempre para diminuir o negro em relação ao branco.
Que efeito pode causar o uso da obra nas escolas?
A criança não nasce racista, ela aprende a ser racista. Quando você utiliza esse tipo de livro dentro das escolas, você a está ensinando a ser racista.
Monteiro Lobato é considerado um clássico da literatura brasileira. Não seria melhor que a escola usasse a obra abordando essas questões, em vez de não usá-la?
O sistema educacional brasileiro hoje não tem a preocupação de formar professores preparando-os para questões raciais. Quando eles chegam à sala de aula, não conseguem identificar no dia a dia o que é racismo.
CONTRA O VETO AO LIVRO
Milena Ribeiro Martins, especialista em Monteiro Lobato e professora de literatura brasileira e teoria literária da Universidade Federal do Paraná, defende a utilização das obras do escritor nas escolas e remete ao mediador de leitura a discussão sobre o tratamento aos negros.
Folha - Há elementos de racismo na obra do escritor?
Milena Martins - De fato, aparecem muitos ditos preconceituosos na obra de Monteiro Lobato. [Hoje] temos um linguajar politicamente correto que é tido como modelo, e tudo o que foge a ele é errado: preto é menos desejável que negro, melhor ainda é afrodescendente.
Na época de Lobato, é bom que a figura do negro apareça com o destaque de uma pessoa afável como a Tia Nastácia. Antes, aparecia só como denúncia social ou não aparecia. Então, temos uma personagem negra que assume voz importante, mesmo que seja chamada de negra beiçuda. Significa que ela está interagindo.
O CNE recomendou uma nota para acompanhar os livros. Qual é sua opinião?
Precisa haver o discernimento do professor. Um livro levado para escola não é lido sem a mediação do professor. Se vamos passar pente fino nos livros procurando preconceito, vamos ter que fazer em todos os clássicos. É humanamente impraticável.
O que a sra. acha do abandono do livro pelo governo?
O Lobato é um escritor contra o qual muitas vozes se levantam. Se o ponto fosse o abandono de "O Mercador de Veneza" pela questão dos judeus, não se faria porque é [William] Shakespeare. O livro de Lobato deve ser distribuído, ele é um grande escritor nacional.
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Os meus comentários são dois: 1) parece que o tal servidor não leu direito o livro, que é divertidíssimo e escrito com perfeição (alguns dos grandes momentos de Emília estão ali); 2) se leu de verdade e só comentou essas bizarrices falsamente socioeducativas, fica claro que o que realmente incomoda os egrégios servidores públicos é a denúncia veemente (e engraçadíssima) que Lobato faz, na segunda metade do livro, da burocracia da máquina governamental, da inércia deliberada e injustificada dos órgãos federais, da falta de preparo dos agentes oficiais mandados pelos chefes de governo, da incompetência enfim dos entes políticos para resolver o que quer que seja.
Parece que o Pedrinho achou mais uma presa em suas caçadas. Só que ela covardemente foge, grita e ataca pelas costas.
Nojo disso tudo.
ResponderExcluirMe irrita profundamente esse vocabulário "politicamente correto", até porque o caráter discriminatório está mais na entonação e no uso que fazem das palavras que nelas mesmas.
É muito pior atravessar a rua por não querer cruzar com um "afrodescendente", do que ter um grande amigo e dizer que ele é "preto".
Aliás, sem querer entrar no mérito da obra ser racista ou não, é impressionante como os adultos de hoje querem fechar as crianças em bolhas, isolá-las por completo do mundo externo.
Ninguém mais pode fumar nos filmes e desenhos animados, o vocabulário deve ser excessivamente polido com todas as minorias, deve-se evitar qualquer coisa que possa assustar os pequenos e referências à sexualidade estão completamente banidas.
Esse é o equivalente social e cultural aos pais neuróticos que não deixam os filhos travar contato algum com sujeiras e bactérias. Sem anticorpos, o infeliz morre logo na primeira gripe.
E é engraçado notar como todas as alternativas oferecidas por esses malas - em termos de entretenimento e pedagogia - tratam as crianças como verdadeiras débeis-mentais.
Sim. E o argumento? "A criança que lê algo racista será um adulto racista". Além de reducionista, é algo tão estapafúrdio que me leva então a crer que quem fala algo assim leu o "Manual dos idiotas" quando era pequeno...
ResponderExcluirE para fazer algo bom para crianças é preciso evitar a todo custo as duas polarizações que sempre são a tentação de quem produz coisas para essa faixa etária: a criança não é nem retardada e nem um míni-adulto. Ela tem seus medos, seus pensamentos e sua maneira de se expressar e de agir. O Lobato entendia isso muito bem, e é impressionante também como mais de sessenta anos depois da morte dele ainda tem gente que pensa na contramão dessa percepção...
De caçadas para cagadas:
ResponderExcluirhttp://www.youtube.com/watch?v=9N2tZj_Tky0
Já tinha visto. Como disse Platão, "prova aos detratores dos evangélicos que nem sempre eles fazem cagadas".
ResponderExcluirNão concordo que tenha que proibir o livro, livro nenhum tem que ser proibido, MAS o monteiro lobato é MUITO racista sim e ele era a favor da eugenia abertamente. Tu nunca deve ter lido "O Presidente Negro", né?
ResponderExcluirenfim, mesmo assim, nao é motivo pra proibir.
Não li O presidente negro. Mas o Caçadas de Pedrinho NADA tem de racista, e na obra infantil dele não existe NADA relacionado a um desejo eugênico ou racista de doutrinar quem quer que seja. E eu não posso falar de um livro que (ainda) não li, mas francamente duvido que tenha esse conteúdo, Daiane. Por todos os livros e cartas que li do Lobato, nunca vi pensamento dele nesse sentido. Não que eu ache que você não "entendeu" o livro, mas eu acredito que deva ser o mesmo caso do Caçadas, que várias pessoas acreditam ter um explícito conteúdo racista e eu não acho que haja qualquer elemento na obra que permita afirmar isso...
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