Desde pequeno percebo como nossas vidas são ridículas em alguns sentidos (ou melhor: não são ridículas em alguns sentidos). Somos minúsculos. Se já é absurdo tentarmos nos situar diante de um universo sempre em expansão, um mundo gigantesco e um país do tamanho de um continente, há também as proporções do dia a dia: pessoas que vemos na rua e nunca iremos conhecer, gente com que cruzamos apenas uma vez na vida e outros tipos em que não reparam.
Vejo sempre alguns sujeitos andando por aí, há anos, e nunca soube o nome deles, nunca os conheci; lembro deles, de seu jeito de andar, seu tipo físico, às vezes até da voz, mas sei que nunca seremos apresentados e morreremos assim, sem contato. Eu gosto de tentar me familiarizar com essas pessoas de um jeito esquisito: se de certa maneira me encanta essa coincidência de todo dia ver alguém e não saber quem ela é, seu nome, no que trabalha, o que faz da vida, também gosto de imaginá-los aparições hitchcockianas no filme da minha vida. Sei que eles estarão lá, mas aparecem de repente, sem aviso, por tempo indeterminado, fazendo sabe-se lá o quê. Alguns eu identifico por um traço físico acentuado e até me acostumo a me referir a eles de alguma maneira que eu mesmo criei, por alguma razão. É fascinante pensar que alguém pode fazer parte da sua vida sem nem saber quem você é.
Por exemplo: perto do prédio onde moro esbarro freqüentemente com um sujeito de ar grave, barba muito espessa e branca. Já o vi num bar, na rua — inclusive uma vez paramos juntos na calçada para esperar um carro entrar em uma garagem, e o comentário rabugento dele, com seus botões, foi: "esse aí comprou a rua" —, já o vi em tantos lugares e ocasiões diferentes que não poderia deixar de me referir a ele de alguma maneira; eu o chamo de Monet, ou de Fernando Torres. Do mesmo modo há um sujeito caricatural que vejo também com freqüência, baixinho, testudo, cara de bêbado, muito feio, que inclusive costumo imitar para a minha mãe e ela reconhece na hora. Quantas vezes já não vi esse cidadão? Não sei nada sobre ele.
Verdade é que as distâncias são singulares e imprevisíveis. No meu prédio há uma garota que a minha família brinca dizendo que é a minha "noiva", por alguma razão (?). Eu não a conheço, ela não me conhece, e não a vi mais que raríssimas vezes; aliás, apenas dia desses descobri seu nome — por "xeretice profissional" da minha irmã, que parece saber quase toda a biografia da menina. Moramos no mesmo prédio há anos, ela estuda ou estudava na mesma escola que eu (saudoso Cristo Rei) e nunca vamos nos falar ou nos conhecer. Não sei se pela diferença de idade (ela é alguns anos mais jovem do que eu), mas talvez por desencontros naturais dos espaços urbanos: eu não freqüento os mesmos lugares que ela (bem, isso eu imagino), não temos nenhum amigo em comum e nem ao menos moramos no mesmo bloco. Esse tipo de coisa me intriga. Nunca a conhecerei senão por um acaso qualquer. E a gente mora no mesmo prédio, todo dia estamos a poucos metros um do outro!
Por sinal, também não sei o nome da maior parte das pessoas do meu condomínio, das inúmeras idosas que lagarteiam no sol dos dias quentes, dos pais das pequenas gêmeas que brincam debaixo da minha janela. Só posso concluir que no mar de bilhões de pessoas atualmente no planeta, cada homem é uma ilha.
P.S.: A saga do Adão continua, mas as novas cartas publicadas na Folha são tão constrangedoramente estúpidas que me escusarei de republicá-las aqui.
"They say that no man is an island"
ResponderExcluirÉ mentira, Jon.
They lie.
ResponderExcluirQue belo post, Filipe. Desde pequena também penso exatamente o mesmo.
ResponderExcluirE quantos anos você tem hoje?
ResponderExcluir16... é, não faz tempo.
ResponderExcluirQual seu nome? Ou pelo menos suas iniciais?
ResponderExcluirÉ engraçado isso. Tenho um conhecido-desconhecido que sempre encontro em vários pontos da cidade onde moro. É um senhor, no estilo Santiago, do livro O velho e o mar.
ResponderExcluirComeçou pelo cineclube que eu frequentava, (nossos diálogos nunca avançaram o limite do "Boa noite, menina" e um aceno meu com a cabeça), depois o avistei algumas vezes numa praça de alimentação, outra vez na biblioteca, e por último dei de cara com ele anteontem, numa faixa de pedestres.
Mesmo sem fazer ideia de quem seja, o que faz, como é sua vida (apesar de imaginar bastante),se é boa gente ou não, confesso que nutro uma simpatia por ele.
Parabéns pelo blog, me identifiquei muito com alguns textos.
Obrigado! E boa noite, menina.
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