sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Caçadas

Novamente me impressiona o quanto o vasto acesso aos meios de informação não só não nos torna mais sábios como parece justamente surtir às vezes efeito contrário; a vítima da vez é o sempre genial Monteiro Lobato, com uma polêmica tão imbuída de interesses obscuros que nem sei se dá para classificar de "politicamente correto" apenas. Na verdade, creio que é simplesmente falta de leitura; caso se detivessem na obra, entenderiam que quando Lobato escreve "Não é à toa que os macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens.", não está em absoluto sendo preconceituoso com homens da cor negra (aliás, é uma interpretação tão absurda que não sei por que perco meu tempo a comentando); é óbvio e cristalino que é um comentário desgostosamente irônico sobre a natureza HUMANA, essa raça que não se controla também para ESCREVER bobagens, como bem prova essa abjeta tentativa de censura — aliás, talvez se buscassem as inspirações de Lobato veriam que Kipling também discute a natureza expansiva do comportamento dos macacos, sem nunca também ser racista ao fazer o tal paralelo com os homens.

É de buscar pêlo em ovo que se trata. Tia Nastácia é um dos personagens mais positivos que conheço. Ela é ignorante (no sentido mesmo de "falta de instrução"), supersticiosa, medrosa. Mas ao mesmo tempo, ela é assim por criação, por falta de oportunidades; e, forte como é, faz do desconhecido um impulso para a obtenção do conhecimento: ela perde o medo e passa a entender mais completamente a realidade das coisas que estão à sua volta. Lembro particularmente de um trecho de Reinações de Narizinho em que ela se depara com o Burro Falante, animal capaz de assustar qualquer pessoa comum: ela fica apavorada, por muito tempo não se aproxima, acha que é coisa do tinhoso e por aí vai; mas depois ela convive, ela fala com o educado quadrúpede, ela vê que nem sempre o que dizem que está errado de fato é errado, pecaminoso, ruim, mau. Ela e o Burro Falante ficam grandes amigos, trocam confidências, proseiam animadamente. Isso é um desenvolvimento sutil e brilhante de personagem.

Claro que aos ignorantes do governo não interessa entender o contexto da obra e nem observar o tratamento irreverente que Lobato consagra à discussão racial, ele que foi talvez o primeiro a dar voz às crendices do povo e a considerá-las parte integrante de nossa cultura, e não um folclore pagão, imoral e primitivo. Há em sua produção infantil um livro dedicado a esses relatos, intitulado justamente Histórias de Tia Nastácia. Ele nunca foi racista como tentam pintar, não há em suas obras qualquer desprezo ou menosprezo por etnias diferentes da sua, por outros povos — vide Aventuras de Hans Staden, em que Dona Benta comenta muito propriamente que o português é a língua mais bonita do mundo para quem o fala, sendo o italiano a língua mais bonita para quem a fala, o francês, o árabe, o japonês etc. —, e nem fazia pouco de outros pensamentos, aliás, Emília é a iconoclastia em pessoa.

Antes de dar minha opinião sobre as razões desse ridículo debate, os dois lados:

A FAVOR DO VETO AO LIVRO

Autor da denúncia contra o livro de Monteiro Lobato à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, Antonio Gomes da Costa Neto diz que a obra "ensina" a ser racista e que falta preparo aos professores para lidar com o tema. Costa Neto é servidor da Secretaria da Educação do DF e mestrando da UnB (Universidade de Brasília) na área de relações raciais.


Folha - Qual o problema em relação ao livro?
Antonio Gomes da Costa Neto -
Os professores, no dia a dia, não têm o preparo teórico para trabalhar com esse tipo de livro. Então, não é que ele deva ser proibido. O que não é recomendado é a sua utilização dentro de escola pública ou privada.

Quais são as marcas do preconceito racial no livro?
O livro deixou para trás as regras de políticas públicas para as relações étnico-raciais. Há estereótipos nas personagens como a Tia Nastácia e os animais. Todos os animais são relacionados à cor negra com preconceito. Sempre para diminuir o negro em relação ao branco.

Que efeito pode causar o uso da obra nas escolas?
A criança não nasce racista, ela aprende a ser racista. Quando você utiliza esse tipo de livro dentro das escolas, você a está ensinando a ser racista.

Monteiro Lobato é considerado um clássico da literatura brasileira. Não seria melhor que a escola usasse a obra abordando essas questões, em vez de não usá-la?
O sistema educacional brasileiro hoje não tem a preocupação de formar professores preparando-os para questões raciais. Quando eles chegam à sala de aula, não conseguem identificar no dia a dia o que é racismo.

CONTRA O VETO AO LIVRO

Milena Ribeiro Martins, especialista em Monteiro Lobato e professora de literatura brasileira e teoria literária da Universidade Federal do Paraná, defende a utilização das obras do escritor nas escolas e remete ao mediador de leitura a discussão sobre o tratamento aos negros.


Folha - Há elementos de racismo na obra do escritor?
Milena Martins - De fato, aparecem muitos ditos preconceituosos na obra de Monteiro Lobato. [Hoje] temos um linguajar politicamente correto que é tido como modelo, e tudo o que foge a ele é errado: preto é menos desejável que negro, melhor ainda é afrodescendente.
Na época de Lobato, é bom que a figura do negro apareça com o destaque de uma pessoa afável como a Tia Nastácia. Antes, aparecia só como denúncia social ou não aparecia. Então, temos uma personagem negra que assume voz importante, mesmo que seja chamada de negra beiçuda. Significa que ela está interagindo.

O CNE recomendou uma nota para acompanhar os livros. Qual é sua opinião?
Precisa haver o discernimento do professor. Um livro levado para escola não é lido sem a mediação do professor. Se vamos passar pente fino nos livros procurando preconceito, vamos ter que fazer em todos os clássicos. É humanamente impraticável.

O que a sra. acha do abandono do livro pelo governo?
O Lobato é um escritor contra o qual muitas vozes se levantam. Se o ponto fosse o abandono de "O Mercador de Veneza" pela questão dos judeus, não se faria porque é [William] Shakespeare. O livro de Lobato deve ser distribuído, ele é um grande escritor nacional.

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Os meus comentários são dois: 1) parece que o tal servidor não leu direito o livro, que é divertidíssimo e escrito com perfeição (alguns dos grandes momentos de Emília estão ali); 2) se leu de verdade e só comentou essas bizarrices falsamente socioeducativas, fica claro que o que realmente incomoda os egrégios servidores públicos é a denúncia veemente (e engraçadíssima) que Lobato faz, na segunda metade do livro, da burocracia da máquina governamental, da inércia deliberada e injustificada dos órgãos federais, da falta de preparo dos agentes oficiais mandados pelos chefes de governo, da incompetência enfim dos entes políticos para resolver o que quer que seja.

Parece que o Pedrinho achou mais uma presa em suas caçadas. Só que ela covardemente foge, grita e ataca pelas costas.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Os outros

Existem algumas coisas que simplesmente não conseguimos fazer.

Eu, por exemplo, sempre fui péssimo para decorar coisas. Só decoro informações "não importantes", coisas de que gosto, nomes de filmes, autores de quadrinhos, títulos de livros. O que é muito ruim para a minha área de estudos, que é basicamente um amontoado de legislações e fórmulas processuais puramente baseadas no acúmulo de dados, na repetição, na decoreba.

No cursinho, estou estudando diariamente dezenas de peças (é assim que eles chamam os documentos de ações e recursos), para um exame que ocorrerá daqui a menos de três semanas. Meus colegas sabem de cor as coisas que os professores perguntam, eu não. Eles acham tudo fácil, eu não. Eles conseguem praticar todo dia e tirar disso algum proveito, eu não.

Certas coisas podem parecer fáceis a todo mundo mas constituir ao mesmo tempo um problema incontornável a você. Eu também pego de exemplo dirigir. Antes de tirar carta, eu olhava na rua e pensava: QUALQUER AMEBA CONSEGUE DIRIGIR. Ainda hoje penso assim. Mas qualquer ameba, não eu. Não que eu me sinta o suprassumo da inteligência (não me sinto), mas já percebi que não há cabimento em pegar aleatoriamente pessoas de outros lugares, outras vidas e aparências, para usar de comparação: "até esse aí sabe dirigir e dirige bem, logo, eu devo conseguir também". Depois que eu passei pelo exame da auto-escola, percebi que não tenho segurança em conduzir veículos; na vida real não existe vassoura colocada para medir baliza, e não dá para treinar em rampas ou ruas, se você tira o carro da garagem ninguém vai esperar você treinar — a única coisa que se espera é que você dirija logo.

Então um dia percebi que existem coisas para as quais temos aptidões, talentos e competências, e outras que, não importa o que digam sobre seu grau de dificuldade, sempre serão um mistério para nós.

Também nunca consegui amarrar rápido cadarços, o que é uma das razões para eu só usar sapatos que não os têm.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Dependência

Até o meio da minha adolescência era muito raro ver um celular. Nas ruas, o máximo que se via era o outrora famoso "bip", principalmente utilizado por executivos. Aí hoje vivemos uma era em que as pessoas compram vários celulares, trocam de modelo a todo instante, presenteiam os amigos e parentes, enfim, uma explosão de telefonia móvel. Isso é desolador.

Não sei por que as pessoas fazem questão de serem a todo instante encontradas. Por que querem sempre falar com alguém, por qualquer coisa, a qualquer momento. Não dá mais para ir ao metrô sem encontrar alguém berrando num aparelho perto de você — e, pior, de uns tempos para cá começou uma maldita mania com rádios estilo "walkie-talkie" —, nem é possível ver alguma rua movimentada sem pelo menos uma pessoa se servindo disso para falar alguma besteira qualquer. No meu cursinho, quando acaba a aula eu tenho de descer nove andares de escada, e é difícil precisar algum dia em que atrás de mim havia alguém silencioso desbravando os degraus. As pessoas têm uma necessidade absurda dessa máquina.

Alguns anos atrás, ninguém se desesperava por ficar algumas horas sem contato com outras pessoas. Nem se perdia nas lojas se não tivesse esse telefone. A impressão que eu tenho é que um dispositivo como o celular, que é vendido como símbolo da liberdade e mobilidade, é o extremo oposto disso: ele funciona como aquelas pulseiras que colocam em animais ameaçados de extinção — assim dá para sempre saber onde eles vão, onde estão, o que fazem.

Não sei que necessidade imperiosa as pessoas possuem de conversar tanto com esses telefones, no meio da rua, perdendo reflexos, ignorando os outros pedestres, discutindo em voz alta assuntos particulares. Acho que o imediatismo do contato é algo que só serve em situações específicas, no mais das vezes é apenas uma prisão a que voluntariamente todos se submetem.

Eu prefiro usar meu celular para ouvir música mesmo.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O bom, o mau e o feio

O bom
Na sexta e no sábado eu pude conhecer pessoalmente um dos artistas que me acompanham há anos em minha vida: Fabio Civitelli, um dos principais desenhistas do granítico Tex. Cheguei à tarde no evento, e poucos minutos depois de lá aportar já avistei aquela figura de óculos, cabelos curtos, de elegância européia, simpaticamente andando por ali como um anônimo qualquer, cumprimentando a todos com grande polidez. Ele me deu a mão e eu ainda fiquei um tempo falando com alguns amigos — a maior parte conhecidos há eras, mas até então apenas por contatos virtuais — antes de ir para a mesa onde Civitelli estava e finalmente criar a coragem de pedir alguns autógrafos em gibis e livros que levara até lá. Não foi preciso implorar: Civitelli já sabia as solicitações que seus fãs lhe fariam, e além de assinar tudo na maior boa vontade, ainda dava a todos um exclusivo desenho de Tex na Avenida Paulista (!), falando gentilmente que era "um presente" (um dos termos em português que ele arriscou esporadicamente).

Na sexta-feira a coisa estava tranqüila e eu pude tomar o tempo de Civitelli durante muitos e muitos minutos: ele, incansável, mostrou e comentou para mim cada um das dezenas de desenhos, pranchas e folhas que levara para o evento, falando sobre sua técnica, sobre os efeitos pretendidos, o tempo de realização de cada ilustração, novos planos para outros projetos, bastidores do mundo dos quadrinhos e muitos outros assuntos. Ele não se estava fazendo de solícito; ele É assim. Era flagrante a paixão dele pela arte com que trabalhava, com as possibilidades da expressão dos quadrinhos, pelos leitores, gente que afinal o lê há anos e estava tendo a oportunidade de conhecer finalmente o criador de tantas páginas e personagens.

No sábado eu voltei ao evento, ele me reconheceu e entusiasticamente me cumprimentou assim que me viu. Falou-me, após eu pegar mais uma leva de autógrafos, que havia visto meu texto publicado na véspera no blogue de um amigo colecionador, velho conhecido de nós dois. Depois foi dar uma palestra, e fiquei mais um bom tempo entre amigos aficcionados por quadrinhos, finalmente me despedindo de todos para ir embora. Civitelli apertou minha mão e disse: "Ciao, Filipe!", sorrindo.

Hoje eu levei para emoldurar o desenho com a dedicatória exclusiva; mas sem dúvidas o mais interessante foi poder falar descompromissadamente com um desenhista acessível, falar do ofício de trabalhar com uma das minhas mídias prediletas, discutir de igual para igual com um artista que admiro e que nunca imaginei conhecer pessoalmente até poucas semanas atrás. Evidentemente tirei muitas fotos dos autógrafos e meus parceiros de jornada completaram o serviço com muitas imagens minhas no evento, mas aqui quero colocar apenas uma foto que ilustra bem a interação de que falei com tão pouca economia de elogios:


O mau
Paul McCartney, o lendário "garoto de Liverpool" se aproxima dos 70 anos com uma mentalidade que deixaria sua juventude rebelde de cabelos em pé. O que dizer de uma apresentação cujos ingressos custando centenas de reais são disputados a tapa? E isso considerando que nem há garantia de que todos consigam vê-lo, seja porque não há ingressos suficientes, seja porque há lugares vendidos em que nem uma luneta daria conta de desafiar a distância que separa o público do palco. Até aí, ele não poderia fazer nada, afinal, não projetou a casa de espetáculos; mas será que ele não poderia conversar com seus produtores sobre os preços exorbitantes praticados? Ele, um sujeito tão influente e respeitado, não pode perceber o absurdo que é cobrar valores tão gritantemente desajustados assim? Ainda mais em um país como o Brasil, notoriamente com uma eterna defasagem social, cobrar esses preços chega a ser quase insultoso. Mas quem reclama? Quanto mais altos os preços, mais o público se sente compelido a ceder a eles. Dizem que é a chance de uma vida, oportunidade de ouro, para nunca mais. Pode bem ser, mas há que se pesar valores, não? Não os dos ingressos, mas aqueles do bem-estar de uma pessoa. Vale mesmo a pena pagar quase mil reais por um tumulto infindável, para ver mr. McCartney, nas dimensões de uma pulga, se agitando num palco no qual você só ficará três horas? Vale mesmo a pena pagar dois mil reais num ingresso que algum especulador miserável comprou por seiscentos reais, para dizer que foi ao concerto e sentir-se especial por ter conseguido o ingresso tão raro? O inconformismo do ex-Beatle morreu à medida que ele envelheceu? O dinheiro entrou e seus princípios saíram? Como compactua com um mercado de esculacho como esse que transformou a corrida desenfreada para ingressos de seu show em uma demonstração das qualidades mais dispensáveis da vida em sociedade (competição vazia, ostentação de valores materiais, especulação criminosa)?

O feio
Gostava absurdamente de Laerte. Desde a genial Carol, da maravilhosa revista Zá, até os impagáveis Piratas do Tietê, seus trabalhos eram para mim sempre um motivo de comemoração. Desenhos incríveis, idéias sensacionais. Até que uma tragédia pessoal mudou o rumo de sua vida e de sua arte. E hoje ele está uma sombra do que foi. Mas o mais feio da história é que ele está numa crise terrível. Não apenas artística, mas pessoal. Ler esta entrevista é ficar um pouco mais descrente com o mundo. Laerte utiliza agora o experimentalismo como punição, e entendo que por isso suas criações têm sido monótonas, desagradáveis, cruas — um reflexo do que ele próprio hoje considera acerca daquilo que desenvolvia há décadas. Lamentável encontro de um artista com seu lado mais negro. Ainda espero que ele dê a volta por cima e reinvente-se, como deseja, de uma maneira que nem seu maior pessimismo poderá destruir.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Dicionário

No final de semana eu falava com meu pai sobre o "bendito" acordo ortográfico. "Acordo" assim entre aspas porque, como bem diz o Pasquale, não há acordo com um só signatário. Só o Brasil ratificou essa beleza. Desconheço se algum país lusófono da África já tornou obrigatório também essa nova grafia (eles que nem falam português praticamente, e sim um amontoado de dialetos tribais em tudo diferentes do português), mas Portugal segue em sua intocável ortografia — no que penso estarem certíssimos, não é unificando uma língua que os problemas lingüísticos estarão resolvidos.

À parte a discutível intenção "social" de padronizar a grafia nos tais países, essa reforma é tão estúpida, mas tão estúpida, que até incomoda falar dela. Sei que um dia vou me acostumar, mas não pode ser de outro jeito, já que será obrigatório daqui a bem pouco tempo escrever dessa maneira estapafúrdia. Quer dizer, quem não tem os dons da persuasão ganha pela força. A reforma não convenceu ninguém de sua oportunidade e necessidade. Então para ela ser adotada só a tornando obrigatória.

O pior caso para mim continua sendo o do trema. Não consigo vislumbrar que sombra de demência pode ter obscurecido os autores dessa reforma quando justificaram essa supressão por meio de uma desculpa ridícula como: "o trema já havia caído em desuso". Oras bolas, ESCREVER BEM está em desuso. É difícil hoje encontrar alguém que se preocupe com regência, concordância, pontuação. Então vamos oficializar o mau português? Patético, em todos os sentidos. O trema era um símbolo com uma função. "Sagüi" é diferente de "guilhotina". A língua deve ser lógica, e não um punhado de regras sem sentido. As crianças aprenderão agora como? Pronunciarão "linguíça" e quem poderá culpá-las? Elas estão decodificando o texto de acordo com o que está codificado. Pegar um mau costume da linguagem atual e torná-lo regra é um crime contra a língua portuguesa, que era uma das mais belas do mundo (e que contudo ainda deve ser, mesmo depois dessa surra).

Eu não sou o rei da gramática, cometo vários erros a todo instante, mas não sou bobo de achar que a língua não muda; muda sim, e se isso não é louvável é pelo menos inteiramente compreensível. Outros tempos, outras maneiras de se expressar. Mas mexer na ortografia é inútil, pelo menos considerando a boa reforma de 1971, que não tinha quase nenhum defeito. Uma das vantagens da língua francesa é que sua ortografia está inalterada há não sei quantos séculos: ler Molière no original é o mesmo que ler Le Clézio, as diferenças são apenas vocabulares. Isso é identidade. É sabedoria, é a força do idioma. O português se altera tanto que só um especialista lê com fluência um texto de do século XVII.

Eu faço questão de escrever no padrão 1971 até a obrigatoriedade definitiva em 2012. E, por mim, até voltaria com o maravilhoso acento grave no meio das palavras (outra boa coisa francesa), que não tem nenhum contra-indicativo e era uma verdadeira mão na roda — aqui perto tem uma loja chamada "Pézinho legal", e um acento grave no lugar certo acabaria com todo tipo de equívoco. O problema é a lei do porrete e da dentada: quem tem a faca e o queijo na mão são os examinadores de concursos, os elaboradores de editais, os empregadores. E eles vão cobrar mesmo os mais incoerentes casos de hífens, acentos gráficos e todas as regras de rodapé que nenhum dos egrégios intelectuais que bolaram a reforma sabe explicar direito. E nem eles.