segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A ironia

Passei semana passada pela minha última prova da faculdade. Finalmente me livrei desse lugar que só me trouxe dor de cabeça, aborrecimento, tristeza, que me fez conhecer gente cruel, ruim e desinteressante. Mas aos poucos todas as maldades vão perdendo o sentido, é natural ao ser humano ir se esquecendo de suas dores e seguir vivendo, procurando algum sentido para prosseguir. E comigo isso também acontece, mas eu não tenho como esquecer toda a infelicidade por que passei na fábrica acadêmica, e não posso pensar em tratar os negros anos em que lá estive como probleminhas bobos que não importam muito e provavelmente dos quais exagero as dimensões. Não. Eu sei que eu fui muito maltratado lá, e que não guardarei nenhuma recordação boa em meio a tanta opressão. Não tenho uma boa memória, mas basta eu reler alguns posts antigos aqui neste blogue para entender como me preocupava e sofria, como o que eles faziam era errado e como nunca mais recuperarei o que de bom havia em mim antes de eles destruírem tudo com seus métodos tirânicos e seu sistema negligente.

Por outro lado, esse aparente esgotamento do terror não me trouxe alívio. Sinto agora como se os cinco anos que desperdicei lá realmente fossem um nada, uma energia absurda que despendi sem obter com isso qualquer resultado, uma perda colossal de tempo. Cinco anos inúteis, nos quais nada aprendi ou apreendi e ainda me feriram com uma arma eterna, de deixar cicatrizes indeléveis. E percebi que agora, depois de tudo acabado, não posso olhar para trás e dizer que valeu a pena; só posso dizer que não sei mais o que fazer e que pelo menos uma fonte de angústia secou. Mas a incerteza reina mais forte que nunca, e me vejo como alguém que teve suas forças plenamente sugadas e depois foi atirado na arena de um adversário terrível, a fuga é impossível mas já não há como lutar.

Faculdade: os melhores anos da vida. Agora entendo. Só agora.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Jabutigrama

Se tem uma coisa que não suporto é gente que se acha reformadora das coisas erradas do mundo. Justiceiros de final de semana, quem pensa que pode mudar algo porque no íntimo acredita que a maneira certa é só a sua.

O último exemplo desse tipo de comportamento está aqui. Para mim, tem TANTA coisa errada aí que eu vou comentar por itens:

1) Como assim, "devolva o Jabuti"? Se alegam que o prêmio é idiota, por que se importar com sua destinação?

2) Algum signatário da petição leu os livros do Chico, do Edney Silvestre E do José Rezende Jr.? Como querer discutir algo sem saber do que se trata? Como afirmar qual o "melhor" dos livros (como se isso já não fosse estapafúrdio o suficiente) sem ler todos os três em questão? E por que resumir o debate a essas três obras? Reclamam do reducionismo em sempre premiar Chico Buarque mas nem ao menos os leitores se dignam a conhecer e comentar outros trabalhos envolvidos no prêmio?

3) Que diabos de argumento é "Como pode o segundo lugar da subcategoria se transformar, depois, no primeiro lugar da categoria geral?"? É premiação automática? Categorias diferentes, vencedores diferentes, ora pombas. Não existe categoria "melhor romance e/ou livro de ficção do ano" ou "melhor livro de contos e/ou livro de ficção do ano", ou sei lá que outra bizarrice que os organizadores dessa ridícula petição imaginam. Engraçado que o pessoal lambe-botas do Oscar, esse prêmio tão cretino que é tido como o máximo da honraria de cinema por 90% das pessoas que o citam (e possivelmente 90% dos signatários dessa lista), não percebe que ocorre a mesmíssima coisa nessa e em dezenas de outras premiações? Ou então como eles explicam O pianista ter ganho os troféus de melhor diretor, melhor ator e melhor roteiro e ter perdido a estatueta de melhor filme para Chicago? Dois pesos, duas medidas? Onde está a petição "Martin Richards, devolva o Oscar"?

4) O que Chico Buarque tem a ver com os critérios, duvidosos ou não, de quem o premiou? "Chico, devolva o Jabuti"? Não deveria ser "Jabuti, faça premiações coerentes"? O que afinal querem, seriedade ou holofotes?

5) "Fez-se uma premiação política — e não literária." ? Literatura é nos livros, nas linhas, nas páginas que todos deveriam ler e analisar, e não em cerimônias solenes, entregas de prêmios e troféus. E por que a revolta só agora, centenas de anos desde que esse sistema é praticado?

6) Premiar Chico Buarque sempre que ele lança um livro pode não ser justo, mas não desrespeita QUALQUER regra do Jabuti. É o mesmo que indicar Meryl Streep ao Oscar (ele de novo!) todo ano, é uma questão de preferência dos realizadores do evento e só comprova a inutilidade do evento no mérito da análise da obra e da arte em si.

7) Uma petição mal escrita como essa não poderia nunca ser associada a um alegado desejo de fazer valer "justiça literária".

8) Por que a Record, com base em um episódio mal explicado apenas, retirou suas futuras candidaturas — impedindo autores estreantes e outros necessitados de se valerem do prêmio para conseguir um lugarzinho ao sol no desgastante mercado editorial brasileiro —? Espero francamente que reconsiderem essa decisão, que deixa a impressão terrível de que eles são apenas, em suma, maus perdedores.

Mas é claro que seria virtualmente impossível alguma coisa em que Reinaldo Azevedo se envolveu ter um mínimo de decência.

P.S.: Após meses de hiato, saiu a nova edição da Zingu!. Há alguns textos inéditos meus e alguns republicados, mas os reli agora há pouco e fiquei envergonhado. Acho que devo mesmo parar de escrever sobre cinema.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Caçadas

Novamente me impressiona o quanto o vasto acesso aos meios de informação não só não nos torna mais sábios como parece justamente surtir às vezes efeito contrário; a vítima da vez é o sempre genial Monteiro Lobato, com uma polêmica tão imbuída de interesses obscuros que nem sei se dá para classificar de "politicamente correto" apenas. Na verdade, creio que é simplesmente falta de leitura; caso se detivessem na obra, entenderiam que quando Lobato escreve "Não é à toa que os macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens.", não está em absoluto sendo preconceituoso com homens da cor negra (aliás, é uma interpretação tão absurda que não sei por que perco meu tempo a comentando); é óbvio e cristalino que é um comentário desgostosamente irônico sobre a natureza HUMANA, essa raça que não se controla também para ESCREVER bobagens, como bem prova essa abjeta tentativa de censura — aliás, talvez se buscassem as inspirações de Lobato veriam que Kipling também discute a natureza expansiva do comportamento dos macacos, sem nunca também ser racista ao fazer o tal paralelo com os homens.

É de buscar pêlo em ovo que se trata. Tia Nastácia é um dos personagens mais positivos que conheço. Ela é ignorante (no sentido mesmo de "falta de instrução"), supersticiosa, medrosa. Mas ao mesmo tempo, ela é assim por criação, por falta de oportunidades; e, forte como é, faz do desconhecido um impulso para a obtenção do conhecimento: ela perde o medo e passa a entender mais completamente a realidade das coisas que estão à sua volta. Lembro particularmente de um trecho de Reinações de Narizinho em que ela se depara com o Burro Falante, animal capaz de assustar qualquer pessoa comum: ela fica apavorada, por muito tempo não se aproxima, acha que é coisa do tinhoso e por aí vai; mas depois ela convive, ela fala com o educado quadrúpede, ela vê que nem sempre o que dizem que está errado de fato é errado, pecaminoso, ruim, mau. Ela e o Burro Falante ficam grandes amigos, trocam confidências, proseiam animadamente. Isso é um desenvolvimento sutil e brilhante de personagem.

Claro que aos ignorantes do governo não interessa entender o contexto da obra e nem observar o tratamento irreverente que Lobato consagra à discussão racial, ele que foi talvez o primeiro a dar voz às crendices do povo e a considerá-las parte integrante de nossa cultura, e não um folclore pagão, imoral e primitivo. Há em sua produção infantil um livro dedicado a esses relatos, intitulado justamente Histórias de Tia Nastácia. Ele nunca foi racista como tentam pintar, não há em suas obras qualquer desprezo ou menosprezo por etnias diferentes da sua, por outros povos — vide Aventuras de Hans Staden, em que Dona Benta comenta muito propriamente que o português é a língua mais bonita do mundo para quem o fala, sendo o italiano a língua mais bonita para quem a fala, o francês, o árabe, o japonês etc. —, e nem fazia pouco de outros pensamentos, aliás, Emília é a iconoclastia em pessoa.

Antes de dar minha opinião sobre as razões desse ridículo debate, os dois lados:

A FAVOR DO VETO AO LIVRO

Autor da denúncia contra o livro de Monteiro Lobato à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, Antonio Gomes da Costa Neto diz que a obra "ensina" a ser racista e que falta preparo aos professores para lidar com o tema. Costa Neto é servidor da Secretaria da Educação do DF e mestrando da UnB (Universidade de Brasília) na área de relações raciais.


Folha - Qual o problema em relação ao livro?
Antonio Gomes da Costa Neto -
Os professores, no dia a dia, não têm o preparo teórico para trabalhar com esse tipo de livro. Então, não é que ele deva ser proibido. O que não é recomendado é a sua utilização dentro de escola pública ou privada.

Quais são as marcas do preconceito racial no livro?
O livro deixou para trás as regras de políticas públicas para as relações étnico-raciais. Há estereótipos nas personagens como a Tia Nastácia e os animais. Todos os animais são relacionados à cor negra com preconceito. Sempre para diminuir o negro em relação ao branco.

Que efeito pode causar o uso da obra nas escolas?
A criança não nasce racista, ela aprende a ser racista. Quando você utiliza esse tipo de livro dentro das escolas, você a está ensinando a ser racista.

Monteiro Lobato é considerado um clássico da literatura brasileira. Não seria melhor que a escola usasse a obra abordando essas questões, em vez de não usá-la?
O sistema educacional brasileiro hoje não tem a preocupação de formar professores preparando-os para questões raciais. Quando eles chegam à sala de aula, não conseguem identificar no dia a dia o que é racismo.

CONTRA O VETO AO LIVRO

Milena Ribeiro Martins, especialista em Monteiro Lobato e professora de literatura brasileira e teoria literária da Universidade Federal do Paraná, defende a utilização das obras do escritor nas escolas e remete ao mediador de leitura a discussão sobre o tratamento aos negros.


Folha - Há elementos de racismo na obra do escritor?
Milena Martins - De fato, aparecem muitos ditos preconceituosos na obra de Monteiro Lobato. [Hoje] temos um linguajar politicamente correto que é tido como modelo, e tudo o que foge a ele é errado: preto é menos desejável que negro, melhor ainda é afrodescendente.
Na época de Lobato, é bom que a figura do negro apareça com o destaque de uma pessoa afável como a Tia Nastácia. Antes, aparecia só como denúncia social ou não aparecia. Então, temos uma personagem negra que assume voz importante, mesmo que seja chamada de negra beiçuda. Significa que ela está interagindo.

O CNE recomendou uma nota para acompanhar os livros. Qual é sua opinião?
Precisa haver o discernimento do professor. Um livro levado para escola não é lido sem a mediação do professor. Se vamos passar pente fino nos livros procurando preconceito, vamos ter que fazer em todos os clássicos. É humanamente impraticável.

O que a sra. acha do abandono do livro pelo governo?
O Lobato é um escritor contra o qual muitas vozes se levantam. Se o ponto fosse o abandono de "O Mercador de Veneza" pela questão dos judeus, não se faria porque é [William] Shakespeare. O livro de Lobato deve ser distribuído, ele é um grande escritor nacional.

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Os meus comentários são dois: 1) parece que o tal servidor não leu direito o livro, que é divertidíssimo e escrito com perfeição (alguns dos grandes momentos de Emília estão ali); 2) se leu de verdade e só comentou essas bizarrices falsamente socioeducativas, fica claro que o que realmente incomoda os egrégios servidores públicos é a denúncia veemente (e engraçadíssima) que Lobato faz, na segunda metade do livro, da burocracia da máquina governamental, da inércia deliberada e injustificada dos órgãos federais, da falta de preparo dos agentes oficiais mandados pelos chefes de governo, da incompetência enfim dos entes políticos para resolver o que quer que seja.

Parece que o Pedrinho achou mais uma presa em suas caçadas. Só que ela covardemente foge, grita e ataca pelas costas.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Os outros

Existem algumas coisas que simplesmente não conseguimos fazer.

Eu, por exemplo, sempre fui péssimo para decorar coisas. Só decoro informações "não importantes", coisas de que gosto, nomes de filmes, autores de quadrinhos, títulos de livros. O que é muito ruim para a minha área de estudos, que é basicamente um amontoado de legislações e fórmulas processuais puramente baseadas no acúmulo de dados, na repetição, na decoreba.

No cursinho, estou estudando diariamente dezenas de peças (é assim que eles chamam os documentos de ações e recursos), para um exame que ocorrerá daqui a menos de três semanas. Meus colegas sabem de cor as coisas que os professores perguntam, eu não. Eles acham tudo fácil, eu não. Eles conseguem praticar todo dia e tirar disso algum proveito, eu não.

Certas coisas podem parecer fáceis a todo mundo mas constituir ao mesmo tempo um problema incontornável a você. Eu também pego de exemplo dirigir. Antes de tirar carta, eu olhava na rua e pensava: QUALQUER AMEBA CONSEGUE DIRIGIR. Ainda hoje penso assim. Mas qualquer ameba, não eu. Não que eu me sinta o suprassumo da inteligência (não me sinto), mas já percebi que não há cabimento em pegar aleatoriamente pessoas de outros lugares, outras vidas e aparências, para usar de comparação: "até esse aí sabe dirigir e dirige bem, logo, eu devo conseguir também". Depois que eu passei pelo exame da auto-escola, percebi que não tenho segurança em conduzir veículos; na vida real não existe vassoura colocada para medir baliza, e não dá para treinar em rampas ou ruas, se você tira o carro da garagem ninguém vai esperar você treinar — a única coisa que se espera é que você dirija logo.

Então um dia percebi que existem coisas para as quais temos aptidões, talentos e competências, e outras que, não importa o que digam sobre seu grau de dificuldade, sempre serão um mistério para nós.

Também nunca consegui amarrar rápido cadarços, o que é uma das razões para eu só usar sapatos que não os têm.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Dependência

Até o meio da minha adolescência era muito raro ver um celular. Nas ruas, o máximo que se via era o outrora famoso "bip", principalmente utilizado por executivos. Aí hoje vivemos uma era em que as pessoas compram vários celulares, trocam de modelo a todo instante, presenteiam os amigos e parentes, enfim, uma explosão de telefonia móvel. Isso é desolador.

Não sei por que as pessoas fazem questão de serem a todo instante encontradas. Por que querem sempre falar com alguém, por qualquer coisa, a qualquer momento. Não dá mais para ir ao metrô sem encontrar alguém berrando num aparelho perto de você — e, pior, de uns tempos para cá começou uma maldita mania com rádios estilo "walkie-talkie" —, nem é possível ver alguma rua movimentada sem pelo menos uma pessoa se servindo disso para falar alguma besteira qualquer. No meu cursinho, quando acaba a aula eu tenho de descer nove andares de escada, e é difícil precisar algum dia em que atrás de mim havia alguém silencioso desbravando os degraus. As pessoas têm uma necessidade absurda dessa máquina.

Alguns anos atrás, ninguém se desesperava por ficar algumas horas sem contato com outras pessoas. Nem se perdia nas lojas se não tivesse esse telefone. A impressão que eu tenho é que um dispositivo como o celular, que é vendido como símbolo da liberdade e mobilidade, é o extremo oposto disso: ele funciona como aquelas pulseiras que colocam em animais ameaçados de extinção — assim dá para sempre saber onde eles vão, onde estão, o que fazem.

Não sei que necessidade imperiosa as pessoas possuem de conversar tanto com esses telefones, no meio da rua, perdendo reflexos, ignorando os outros pedestres, discutindo em voz alta assuntos particulares. Acho que o imediatismo do contato é algo que só serve em situações específicas, no mais das vezes é apenas uma prisão a que voluntariamente todos se submetem.

Eu prefiro usar meu celular para ouvir música mesmo.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O bom, o mau e o feio

O bom
Na sexta e no sábado eu pude conhecer pessoalmente um dos artistas que me acompanham há anos em minha vida: Fabio Civitelli, um dos principais desenhistas do granítico Tex. Cheguei à tarde no evento, e poucos minutos depois de lá aportar já avistei aquela figura de óculos, cabelos curtos, de elegância européia, simpaticamente andando por ali como um anônimo qualquer, cumprimentando a todos com grande polidez. Ele me deu a mão e eu ainda fiquei um tempo falando com alguns amigos — a maior parte conhecidos há eras, mas até então apenas por contatos virtuais — antes de ir para a mesa onde Civitelli estava e finalmente criar a coragem de pedir alguns autógrafos em gibis e livros que levara até lá. Não foi preciso implorar: Civitelli já sabia as solicitações que seus fãs lhe fariam, e além de assinar tudo na maior boa vontade, ainda dava a todos um exclusivo desenho de Tex na Avenida Paulista (!), falando gentilmente que era "um presente" (um dos termos em português que ele arriscou esporadicamente).

Na sexta-feira a coisa estava tranqüila e eu pude tomar o tempo de Civitelli durante muitos e muitos minutos: ele, incansável, mostrou e comentou para mim cada um das dezenas de desenhos, pranchas e folhas que levara para o evento, falando sobre sua técnica, sobre os efeitos pretendidos, o tempo de realização de cada ilustração, novos planos para outros projetos, bastidores do mundo dos quadrinhos e muitos outros assuntos. Ele não se estava fazendo de solícito; ele É assim. Era flagrante a paixão dele pela arte com que trabalhava, com as possibilidades da expressão dos quadrinhos, pelos leitores, gente que afinal o lê há anos e estava tendo a oportunidade de conhecer finalmente o criador de tantas páginas e personagens.

No sábado eu voltei ao evento, ele me reconheceu e entusiasticamente me cumprimentou assim que me viu. Falou-me, após eu pegar mais uma leva de autógrafos, que havia visto meu texto publicado na véspera no blogue de um amigo colecionador, velho conhecido de nós dois. Depois foi dar uma palestra, e fiquei mais um bom tempo entre amigos aficcionados por quadrinhos, finalmente me despedindo de todos para ir embora. Civitelli apertou minha mão e disse: "Ciao, Filipe!", sorrindo.

Hoje eu levei para emoldurar o desenho com a dedicatória exclusiva; mas sem dúvidas o mais interessante foi poder falar descompromissadamente com um desenhista acessível, falar do ofício de trabalhar com uma das minhas mídias prediletas, discutir de igual para igual com um artista que admiro e que nunca imaginei conhecer pessoalmente até poucas semanas atrás. Evidentemente tirei muitas fotos dos autógrafos e meus parceiros de jornada completaram o serviço com muitas imagens minhas no evento, mas aqui quero colocar apenas uma foto que ilustra bem a interação de que falei com tão pouca economia de elogios:


O mau
Paul McCartney, o lendário "garoto de Liverpool" se aproxima dos 70 anos com uma mentalidade que deixaria sua juventude rebelde de cabelos em pé. O que dizer de uma apresentação cujos ingressos custando centenas de reais são disputados a tapa? E isso considerando que nem há garantia de que todos consigam vê-lo, seja porque não há ingressos suficientes, seja porque há lugares vendidos em que nem uma luneta daria conta de desafiar a distância que separa o público do palco. Até aí, ele não poderia fazer nada, afinal, não projetou a casa de espetáculos; mas será que ele não poderia conversar com seus produtores sobre os preços exorbitantes praticados? Ele, um sujeito tão influente e respeitado, não pode perceber o absurdo que é cobrar valores tão gritantemente desajustados assim? Ainda mais em um país como o Brasil, notoriamente com uma eterna defasagem social, cobrar esses preços chega a ser quase insultoso. Mas quem reclama? Quanto mais altos os preços, mais o público se sente compelido a ceder a eles. Dizem que é a chance de uma vida, oportunidade de ouro, para nunca mais. Pode bem ser, mas há que se pesar valores, não? Não os dos ingressos, mas aqueles do bem-estar de uma pessoa. Vale mesmo a pena pagar quase mil reais por um tumulto infindável, para ver mr. McCartney, nas dimensões de uma pulga, se agitando num palco no qual você só ficará três horas? Vale mesmo a pena pagar dois mil reais num ingresso que algum especulador miserável comprou por seiscentos reais, para dizer que foi ao concerto e sentir-se especial por ter conseguido o ingresso tão raro? O inconformismo do ex-Beatle morreu à medida que ele envelheceu? O dinheiro entrou e seus princípios saíram? Como compactua com um mercado de esculacho como esse que transformou a corrida desenfreada para ingressos de seu show em uma demonstração das qualidades mais dispensáveis da vida em sociedade (competição vazia, ostentação de valores materiais, especulação criminosa)?

O feio
Gostava absurdamente de Laerte. Desde a genial Carol, da maravilhosa revista Zá, até os impagáveis Piratas do Tietê, seus trabalhos eram para mim sempre um motivo de comemoração. Desenhos incríveis, idéias sensacionais. Até que uma tragédia pessoal mudou o rumo de sua vida e de sua arte. E hoje ele está uma sombra do que foi. Mas o mais feio da história é que ele está numa crise terrível. Não apenas artística, mas pessoal. Ler esta entrevista é ficar um pouco mais descrente com o mundo. Laerte utiliza agora o experimentalismo como punição, e entendo que por isso suas criações têm sido monótonas, desagradáveis, cruas — um reflexo do que ele próprio hoje considera acerca daquilo que desenvolvia há décadas. Lamentável encontro de um artista com seu lado mais negro. Ainda espero que ele dê a volta por cima e reinvente-se, como deseja, de uma maneira que nem seu maior pessimismo poderá destruir.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Dicionário

No final de semana eu falava com meu pai sobre o "bendito" acordo ortográfico. "Acordo" assim entre aspas porque, como bem diz o Pasquale, não há acordo com um só signatário. Só o Brasil ratificou essa beleza. Desconheço se algum país lusófono da África já tornou obrigatório também essa nova grafia (eles que nem falam português praticamente, e sim um amontoado de dialetos tribais em tudo diferentes do português), mas Portugal segue em sua intocável ortografia — no que penso estarem certíssimos, não é unificando uma língua que os problemas lingüísticos estarão resolvidos.

À parte a discutível intenção "social" de padronizar a grafia nos tais países, essa reforma é tão estúpida, mas tão estúpida, que até incomoda falar dela. Sei que um dia vou me acostumar, mas não pode ser de outro jeito, já que será obrigatório daqui a bem pouco tempo escrever dessa maneira estapafúrdia. Quer dizer, quem não tem os dons da persuasão ganha pela força. A reforma não convenceu ninguém de sua oportunidade e necessidade. Então para ela ser adotada só a tornando obrigatória.

O pior caso para mim continua sendo o do trema. Não consigo vislumbrar que sombra de demência pode ter obscurecido os autores dessa reforma quando justificaram essa supressão por meio de uma desculpa ridícula como: "o trema já havia caído em desuso". Oras bolas, ESCREVER BEM está em desuso. É difícil hoje encontrar alguém que se preocupe com regência, concordância, pontuação. Então vamos oficializar o mau português? Patético, em todos os sentidos. O trema era um símbolo com uma função. "Sagüi" é diferente de "guilhotina". A língua deve ser lógica, e não um punhado de regras sem sentido. As crianças aprenderão agora como? Pronunciarão "linguíça" e quem poderá culpá-las? Elas estão decodificando o texto de acordo com o que está codificado. Pegar um mau costume da linguagem atual e torná-lo regra é um crime contra a língua portuguesa, que era uma das mais belas do mundo (e que contudo ainda deve ser, mesmo depois dessa surra).

Eu não sou o rei da gramática, cometo vários erros a todo instante, mas não sou bobo de achar que a língua não muda; muda sim, e se isso não é louvável é pelo menos inteiramente compreensível. Outros tempos, outras maneiras de se expressar. Mas mexer na ortografia é inútil, pelo menos considerando a boa reforma de 1971, que não tinha quase nenhum defeito. Uma das vantagens da língua francesa é que sua ortografia está inalterada há não sei quantos séculos: ler Molière no original é o mesmo que ler Le Clézio, as diferenças são apenas vocabulares. Isso é identidade. É sabedoria, é a força do idioma. O português se altera tanto que só um especialista lê com fluência um texto de do século XVII.

Eu faço questão de escrever no padrão 1971 até a obrigatoriedade definitiva em 2012. E, por mim, até voltaria com o maravilhoso acento grave no meio das palavras (outra boa coisa francesa), que não tem nenhum contra-indicativo e era uma verdadeira mão na roda — aqui perto tem uma loja chamada "Pézinho legal", e um acento grave no lugar certo acabaria com todo tipo de equívoco. O problema é a lei do porrete e da dentada: quem tem a faca e o queijo na mão são os examinadores de concursos, os elaboradores de editais, os empregadores. E eles vão cobrar mesmo os mais incoerentes casos de hífens, acentos gráficos e todas as regras de rodapé que nenhum dos egrégios intelectuais que bolaram a reforma sabe explicar direito. E nem eles.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Projeto

De repente eu percebi como sempre chego atrasado. Como demoro para chegar a conclusões que os outros já tiveram há tempos. Como não sou precoce em nada. Como demoro para ler, como demoro em relações de todo tipo, como sempre penso com atraso, como faço as coisas depois que o tempo delas passa, como com isso não impressiono ninguém e como com isso nada do que faço costuma ter muita importância ou eficácia.

João Montanaro tem quatorze anos e já sabe o que fazer da vida. Na idade dele eu desenhava também, como de resto ainda desenho; mas um traço atrofiado, estéril, eu devia ter me policiado a tempo, ter treinado a habilidade quando ela podia se expandir. Não o fiz. Nem com desenho, nem com música, nem com cinema, nem com nada. Minhas idéias morrem muito cedo. Acho que elas perecem junto com minha competência. Tenho uma vida imaginativa fértil, mas quando é questão de colocar idéias em prática, percebo como sou inerte. Tenho um trilhão de projetos inacabados. Sempre penso que é a vez de retomá-los, mas não tenho forças. Faltam-me também o tempo, a disciplina, a paciência, o orgulho. Penso que as idéias não eram tão boas assim afinal, e aí deixo tudo de lado. E depois de um tempo percebo que aquilo me faz falta e retomo a intenção outrora largada, para reiniciar o ciclo de abandono posterior, voltar à estaca zero, lastimar o tempo perdido.

Após alguns meses de hesitação, decidi retomar um antigo projeto, com outras linhas. Não sei no que vai dar, mas, tome o tempo que tomar, devo isso a mim mesmo.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Old times

Outro dia li numa revista uma entrevista com uma atrizinha da Globo em que ela (por evidente falta de assunto melhor) comentava sua vida sexual, a exemplo de tantos intérpretes televisivos. Se a coisa já é ridícula por si só, fiquei mais bobo ainda quando vi que a tal moça, que deve ter a minha idade, comentava essas intimidades usando expressões como "tesão" — uma das palavras que mais abomino, não consigo ouvi-la sem me incomodar. Aí percebi mais uma vez que não me encaixo na minha geração.

Duvido muito que alguém de seus vinte e tantos anos irá estranhar ou mesmo perceber esse vocábulo largado no meio de uma entrevista (repetido várias vezes, até), pois já está incorporado ao idioma jovem brasileiro há um bom tempo, já não é tabu, não é polêmico, não é nada. As pessoas falam "tesão", e isso é um fato. Assim como falam "transar", assim como pensam e agem de uma maneira perfeitamente compatível com os tempos modernos mas que não me diz nada. E que às vezes até me incomoda.

Eu queria escrever com pluma e gosto de cartas e outros anacronismos, mas não é só por isso que me sinto de outro século. As cabeças dos meus colegas de época giram em outro sentido: eu sou Ptolomeu, eles são Copérnico. Eu acredito em algo que já foi considerado ultrapassado, mas as modernidades me assustam. No meu cursinho, não sei quantas meninas levantaram a mão e falaram que vivem com o namorado há não sei quantos anos, várias da minha idade já com filhos de idade considerável, os homens também possuidores de um código de vida e ética que nunca conseguirei decifrar, mesmo sendo do mesmo gênero, espécie, habitat e era que eles. Houve algum desvio que me deixou essa moralidade esquisita, esse pudor meio obstaculatório à minha total inserção entre meus parceiros de década.

Outro dia eu debatia na internet sobre as vantagens do meu bairro, que acho fantástico. Aí uma garota disse: é um bairro ótimo para se morar, mas os jovens querem baladas, bares. E eu sou considerado jovem, nenhum estudo classificatório ou censo diria o contrário. Mas eu não concordo com nada disso. Eu não chego nem a me sentir velho, porque velhos talvez sejam os pais, os avós dessas pessoas, e eles já acham tudo normal também, acostumaram-se com a idéia de seus descendentes agirem dessa maneira, já é para eles o retrato da mocidade de hoje, eles compactuam, apóiam, entendem. Eu não. Eu me sinto é deslocado, como se fosse um jovem normal, mas de outra época.

Falta descobrir de qual.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Holograma

Acho engraçada a imagem que fazem da gente.

Nos comentários deste post um cidadão ficou bastante chateado por eu ter respondido ironicamente a uma provocação e aí rodou a baiana, rasgou o verbo e desceu a ripa.

Já disse várias vezes que não me interessa muito esse tipo de juízo que fazem de mim, tanto mais que eu não conheço o sujeito e não faço a mínima questão de sua aprovação. Mas é curioso como a gente talvez passe impressões tão distorcidas que elas acabam valendo mesmo como se fossem nossas reais características. É aquilo: tão torto, tão torto, tão torto que acaba ficando reto. E ficamos assim.

O troll me acusa de ser pseudo-intelectual e falso erudito, quando já escrevi inúmeras vezes sobre minha inadequação com a educação formal, institucionalizada, e minha grande dificuldade em acompanhar o passo da cultura, ler mais, ouvir outras coisas etc. Diz que eu não sou mais que um grão de areia sem individualidade, e é justamente o que constatei em tantas ocasiões, já falando aqui sobre a minha insatisfação com isso: não viajei, não conheço o mundo, meu universo é restritíssimo e de fato não tenho qualquer possibilidade de projetar idéias, mudar conceitos ou o que seja. Ele não me ofende negando aquilo que eu nunca disse ser.

A única coisa que ele disse de obviamente errado foi a questão da interpretação de texto: não que eu saiba interpretá-los à perfeição, talvez não o saiba mesmo; mas o que ele escreveu realmente não é passível de ser analisado com lógica, mesmo com a maior boa-vontade em responder educadamente a seus comentários ingenuamente iconoclastas — essa ira de quem diz que é contra o sistema porque achou bonito na apostila de História ser contra as convenções de sua época.

Mas claro que eu já me deparei com trolls e sei que para eles comentar suas ações é o momento de consagração. Alguém que já chega com a empáfia de dizer "vamos ver até onde eu consigo debater com você" logo após ter-se introduzido de supetão com "um punhado de perguntas sinceras" e antes de terminar o assunto com "leia de novo para ver se entende melhor" é alguém que de fato não merece mais muita atenção.

Porém voltemos ao ponto inicial das impressões: apesar de o texto dele alegar o contrário, seu súbito esbravejamento, motivado por minha contra-depreciação, demonstra que ele é tudo que condena: falastrão, falsamente profundo, dono de idéias tão pífias quanto seus argumentos, e, pior, dono de um baita senso de arrogância e megalomania.

A melhor resposta para ele é deixá-lo sem resposta. Parece que assim ele não terá como reclamar, a não ser que arranje um jeito de discordar dele mesmo — o que não parece tão impossível...

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Relógio

O tempo é um dos meus grandes inimigos.

Às vezes eu não ligo pra ele, quando percebo que me sinto como se tanto pudesse ter dez anos (eu já sei como é) ou oitenta (eu imagino como seja).

Mas na maior parte das vezes sinto-me envelhecendo precocemente, ainda que minha cabeça seja mais de criança do que de adulto: não entendo de finanças, vejo mais importância em assistir a Doug todo dia do que em sair à noite, prefiro ler quadrinhos do que filosofia, não me interesso por política e meu avatar no Orkut é o Snoopy escrevendo em sua máquina.

O que acontece é que o tempo tem me enganado. Eu não o sinto passar. Foi comum nos últimos dias eu estar sentado no cursinho (onde pratiquei a "solidão voluntária", porque pela primeira vez eu deliberadamente não quis me enturmar com a chatíssima turma de lá) e não saber que dia da semana era, não me lembrar se já tive aula com um professor naquele dia, perder a noção de quando acordei e dormi, de quanto li no caminho da ida até lá, de quanto tempo durou minha viagem no metrô, de quando seria o intervalo, quase que os números do meu relógio perderam significância (e reparei ontem, pela primeira vez, como meu pobre relógio comprado há uns bons quinze anos está quase sem cor). Eu já vivo os anos como meses, os meses como dias e os dias como minutos. Tudo se repete e nada tem muita distinção. Basicamente sinto, como, vivo o mesmo todo os dias, com ligeiras pinceladas de diferenças.

Sei que quando o tempo deixar em paz meu pensamento, será já uma hora bem adiantada.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Divã

Já postei aqui que me sinto solitário, e cogito tentar começar a me acostumar com isso. Não que eu goste, deve ser meio impossível gostar plenamente da solidão, mas não deixa de ser uma forma obscura de se proteger da carência ou da falta de afetividade. Se eu fosse contar quantas vezes já me decepcionei com meu perene desejo de no final das contas ser importante para alguém, de fazer diferença no pensamento de alguém (família não conta), de ter aquele amigo, aquela garota, aquele colega, eu passaria mais dias do que se tentasse tirar toda a água do mar em baldes. Eu simplesmente sei que de alguma maneira a relação será insatisfatória até um término repentino, e não me apegar é o mínimo que posso tentar fazer para não sofrer mais.

O problema é que sou muito idealista, acredito sempre nas oportunidades (apesar de muitas vezes externar o contrário), e, como eu já havia dito neste blogue, isso não me serve para nada — sempre haverá alguém que arrancará a vitória do meu caminho e chegará antes, conseguirá o que eu desejava, conhecerá quem eu queria conhecer e eu não serei nem mesmo uma lembrança apagada, pois nada signifiquei.

Não adianta nem deixar de ser eu mesmo, acho que já sou tanto eu que me contaminei comigo mesmo. Tenho algo de intragável? Não sei, mas só sei que estou cada vez mais cansado de procurar agradar aos outros. E apesar de minha (acredito) boa índole, tenciono envernizar ainda mais minha couraça de cinismo, para agüentar o tranco da indiferença.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Mar

Ontem foi o último dia da Bienal do Livro aqui em São Paulo. Eu fui com o meu pai na terça-feira e não pegamos praticamente nenhuma fila, e lá dentro também estava consideravelmente tranqüilo — pelo menos considerando o movimento habitual desses eventos. Eis que hoje e ontem li e vi fotos sobre a quantidade de pessoas que estiveram lá nos últimos dois dias. Eu não sei exatamente o número, mas era algo próximo à população da China, ou mais.

O principal mal de uma cidade como esta é a superpopulação. É preciso ser muito estúpido para acreditar que a qualidade de vida é diretamente proporcional à quantidade de pessoas que se amontoam e se acotovelam diariamente em cada canto das ruas. A grotesca enormidade de gente concentrada em um local acarreta mil transtornos, desde a falta de oportunidades decentes a todos (em saúde, trabalho etc.) até a dor de cabeça que é o tráfego, as chances de entretenimento e a segurança dia após dia. É como se a cidade fosse uma roupa apertada: podem até caber todas as gorduras excessivas, mas é muito incômodo, pinica, deixa marcas, sufoca e é desgastante tentar viver nela.

Há coisa de dez dias fui conhecer pessoalmente um dos meus ídolos quadrinhísticos, o mitológico Robert Crumb. Crumb e seu amigo e parceiro também célebre, Gilbert Shelton, estiveram na FLIP umas semanas atrás e a Livraria da Vila os contatou para um evento de "pequenas" proporções em uma de suas unidades, com direito a entrevista e autógrafos. Por que as apas? Porque a fama colossal de Crumb despertou a aparição de uma leva bíblica de seguidores de quadrinhos e malucos de todos os tipos, que infestaram a livraria nesse dia como siriris em volta de lâmpada no verão. Eu estava com dois amigos, e foi uma luta para conseguirmos três dos apenas quarenta ingressos para a oficialização da lembrança com um autógrafo dos dois artistas. O evento havia sido escassamente divulgado e mesmo assim atraiu cerca de quinhentas pessoas — em um espaço que, lotado, responderia apenas pela acomodação de trezentas.

Eu já tive a oportunidade de conhecer pessoalmente alguns cineastas, escritores, quadrinistas e até atrizes que admiro, mas sempre tentando fugir desse espírito de multidão que parece já ser uma das tônicas da paulistanidade. Eu os procurava em ocasiões mais discretas, longe dos mil desconfortos dos eventos nacionais ou amplamente divulgados. Para mim, fugir das turbas não é uma questão de orgulho, vaidade ou iconoclastia, mas uma tentativa de respeitar-me fora da avassaladora corrente de indivíduos que, juntos, são mais solitários que eu sozinho. A melhor coisa da vida é estar sozinho numa sala de cinema domingo à tarde, prazer que em São Paulo parece uma narrativa fantástica. Aqui o lema é se integrar, entrando no bolo e sendo mais uma cabeça no gado indistinto que todo dia pasta alegremente esperando o abate.

Antes só comigo que mal acompanhado pelas multidões.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Labuta

O trabalho enobrece o homem?

Séculos atrás o trabalho era visto como uma atividade subumana, ofício de escravos. Perceberam depois de um tempo que escravo também era gente, e aí todo mundo começou a trabalhar. Hoje quem NÃO trabalha é considerando vagabundo e indigno.

Mas é o trabalho bom?

A meu ver, o trabalho é algo que vem distanciando o homem do que é realmente importante na vida. Não que garantir seu sustento seja irrelevante, mas não conheço muita gente que consiga efetivamente se desligar do trabalho fora do horário de serviço, ou que tenha muitas oportunidades de realização fora dele. O trabalho que era de escravo agora escraviza todos nós. Como isso? O que acontece é que queremos viajar, conhecer pessoas, comprar produtos e juntar um dinheiro para os anos da velhice, mas na verdade tudo que amealhamos não conseguimos realmente utilizar. Qual o sentido da vida se você fica trancado numa sala oito horas por dia e olha pela janela o dia escurecer sem que você tenha aproveitado? Aí quando você pensa: "é pra isso que serve a noite", qual! Além de ser por si só desmotivador ver que toda a luz do dia já se foi e que seu dia resume-se àquele resto escuro das horas finais do dia, bem, quem trabalha sabe: no final do dia dê-se por satisfeito se conseguir abrir os olhos. É o cansaço, o desânimo (porque amanhã é um outro dia), a falta de energia, e, quando você vê, você é um pai que não viu esposa e filhos, você é um leitor que desaba no segundo parágrafo do livro eternamente marcado naquela página, você é um amigo que só sai à noite e só com álcool e outros artifícios consegue fingir-se entretido nos momentos boêmios da alta noite e madrugada. Você não é nada, você já está morto, você trabalha para conseguir o que pensa que quer mas na verdade você nunca usará nenhuma dessas coisas, porque vai continuar trabalhando cada vez mais, e cada vez se cansará mais, e cada vez terá menos tempo para o que realmente te dá prazer, e cada vez menos condições de usar bem esse já exíguo tempo.

Eu quero voltar aos tempos em que o trabalho era só um meio. Porque o fim do trabalho é o próprio trabalho.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Mapa

Ainda duas considerações sobre o sistema "superior" de educação.

- Meus problemas com a faculdade de direito são mais do que evidentes, mas não é apenas por esse curso que tenho desprezo; acho ridícula toda idéia de ensino institucionalizado. Por exemplo, quando ouvimos falar que alguém estuda filosofia, pensamos logo: "esse aí deve pensar na vida o dia todo", mas não; o "conhecimento" que ele adquire na faculdade é o mesmo ensino maçante e ineficaz de todas as outras — a prova do curso deve ser com questões em que o aluno deve diferenciar o connceito de metafísica de Platão do conceito de metafísica de Aristóteles. Quer dizer, a mesma decoreba estúpida, a mesma falsa didática, o mesmo oco educacional, a mesma irrelevância. Não dá pra afirmar que alguém que faz faculdade de psicologia CONHEÇA psicologia, o que essa pessoa certamente conhece é um monte de correntes e teóricos que foi obrigado a decorar nos anos acadêmicos.

- Nunca me acostumei muito ao ritmo da faculdade e nunca gostei muito de estudar (pelo menos não como o estudo é geralmente entendido pela turba universitária: sente-e-decore). Ontem vi não sei que propaganda na televisão veiculando um anúncio sobre escola, crianças etc. E percebi mais uma vez que o problema está na estúpida (ou talvez inexistente) planificação que nossos excelentíssimos educadores estabelecem sem nossa opinião e consideração: quando somos crianças ou jovens, é tudo flores, alegria, aquelas matérias fáceis, nos saímos bem mesmo sem estudar, fácil sair sem traumas desse período da vida; aí crescemos mais um pouco e vamos para o Ensino Médio, os cursinhos, as faculdades — sem preparação, motivação, sem quaisquer condições que atenuem essa guinada brusca, esse repentino desamparo ("vocês não estão mais na escola, lembrem-se disso"), esse despreparo dos professores, esse "você-que-tem-que-se-virar-e-ir-atrás-do-que-quer", como se fôssemos capazes de mudar nossas vidas quando estamos tão vulneráveis e sem poder confiar em ninguém, sem saber o que fazer.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Educação

- Na sociedade em comandita simples, a responsabilidade do comanditário é limitada e a do comanditado, ilimitada.
- A pretensão à punibilidade das infrações disciplinares do advogado, a partir da constatação oficial do fato, prescreve em cinco anos.
- Os princípios da Administração Pública são: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Essas são algumas das coisas que tenho que decorar para o exame da OAB, que ocorrerá provavelmente no começo de novembro. São coisas que não servem para nada mais que provas de admissão e concursos e que não fazem nenhum sentido: com a lógica, não poderíamos nunca intuir que a televisão em uma casa é um bem imóvel por acessão intelectual, que fundações e associações não são a mesma coisa, que extradição, deportação e expulsão são coisas totalmente diferentes e que "tipo de licitação" não é sinônimo de "modalidade de licitação".

O mundo do direito é isso, esse volume enciclopédico de informações inúteis. E é também esse desrespeito para com a didática, pois a única maneira de entender tudo isso é decorando: de que outra maneira chegar à conclusão que os direitos sobre bens imóveis são também bens imóveis? Não há como raciocinar acerca de assuntos tão incompreensíveis e aleatórios.

As provas que cobram isso são testes que só comprovam que a tal educação que tanto dizem ser importante é um instituto falido e que não serve para nada, a não ser comprovar como a "inteligência" hoje é associada necessariamente à memorização. Eu não sou ator, nunca consegui decorar textos, letras de músicas, citações literais de livros, frases de celebridades. E aí está mais um dos meus problemas com o nefasto mundo jurídico, onde o que é valorizado é a robotização das informações, para sempre estarem lá disponíveis, mesmo que para nada ajudem.

Os concursos cobram rodapés de artigos de leis esquecidas, e os alunos têm que estudar mais de dez horas por dia. Para quê? Para entrar num trabalho burocrático e ganhar alguns milhares de reais por mês, ao preço de sua liberdade intelectual e de seu descanso mental — que evidentemente sairão comprometidos desse processo escravista de decoreba galopante.

Quem disse que as ciências exatas são difíceis? Com um pouco de treino e esforço, é possível ver como a matemática se estrutura, por exemplo; e daí entender música, arquitetura, desenho, até poesia. Mas com o direito nada disso é possível: o direito é sal que jogam em terras outrora férteis para o conhecimento. O direito é uma ciência pária que não se relaciona com nada que não interesses reprováveis. E portanto não tem sentido, como quase todas as coisas ruins da vida.

P.S.: Uma coisa boa da vida: O homem do Pau Brasil, de Joaquim Pedro de Andrade. Outra coisa ruim da vida: meu texto sobre o filme, escrito sábado de manhã.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Nuvem

Hoje eu sonhei. E foi um sonho muito, muito bom. Senti-me feliz como há muitos meses (talvez anos) não me sentia. Foi terrível acordar, perceber que era a mesma vida de sempre, o mesmo sono me tolhendo as forças, a mesma falta de ânimo, as mesmas perspectivas que me desanimam e assustam; minto, foi muito pior que a mesma coisa de sempre: o sonho foi tão bom e eu estava tão feliz nele que a realidade me pareceu muito pior e ainda mais cruel.

No sonho eu tomava uma iniciativa que certamente não tomaria na vida que vivo; sei que por isso ele já não poderia ser realidade, mas a sensação era tão embriangantemente boa que me deixei levar, como se estivesse voando, sem amarras, horários, inseguranças. Acho que por alguns segundos percebi que estava para acordar e que tudo aquilo era imaginário, e mesmo assim agarrei-me na ilusão e fiquei transitando entre o sono e a vigília. Claro que um dos lados saiu perdendo e logo acordei, mais chateado que de costume, após a alegria me veio uma espécie de raiva por saber aquilo ser mentira e pela certeza de que nunca sonharia a mesma coisa outra vez (e se há realmente gente que tem o mesmo pesadelo por anos, eu gostaria de ter esse mesmo sonho por anos).

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Em uma frase

Depois de ver coisas assim, não sei se fico triste por ver tanta idiotice e exibicionismo ou se fico com raiva por essas cantoras pops de hoje viverem pensando em que roupa estapafúrdia usar ou que performance "ousada" fazer, quando deveriam investir uma mínima parte dessa energia em fazer músicas bacanas; o que não fazem, e o resultado são clipes e shows pavorosos que nem com o santo recurso do mute conseguimos aturar.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Twitter

M-a-l-d-i-t-o--d-i-a--e-m--q-u-e--f-u-i--e-n-t-r-a-r--n-e-s-s-a--e-x-c-r-e-s-c-ê-n-c-i-a--d-e--f-a-c-u-l-d-a-d-e.

Jeanne d'Arc virou santa por muito menos.

Nunca mais botarei os pés numa universidade novamente; vou pegar o diploma plantando bananeira.

Arma e balas a quem se dispuser a localizar e matar o débil mental que disse que os anos de faculdade são os melhores da vida.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Carochinha

Eu adoro contos de fadas, fábulas, histórias das mil e uma noites e todo tipo de narrativa assemelhada. Desde pequeno, e continuo gostando muito, a lógica que estrutura esses textos é algo de tão assombrosamente brilhante que eu não sei como só recentemente a crítica literária tem se detido a estudar esses gêneros ficcionais.

O problema é quando analisam essas obras desta maneira: http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/759236-contos-de-fadas-nao-contribuem-para-amadurecimento-da-crianca-diz-terapeuta.shtml

Não sei, parece que o entrevistado estava tão interessado em ir na contracorrente que não se preocupou em perceber que boa parte das obras infantis lida com símbolos, com elementos fantásticos, com representações oníricas de uma realidade que a criança provavelmente nem enfrentou ainda. Observar tudo com o olhar de quem percebe um fenômeno social ou comportamental é, além de absurdo (pois outra época e contexto), ridículo. A todo instante ele parece se questionar quais os efeitos que essas histórias têm sobre as crianças, ou o que elas acham dessas narrativas; a ironia é que no começo da página é dito que ele tem não sei quantos filhos e netos — parece que nunca ouviu a opinião deles sobre isso, e provavelmente sobre mais nada.

A sanha em desmistificar teses consagradas às vezes leva ao simples desejo de vaidosamente expor sua erudita opinião contrária. Talvez o ilustre terapeuta devesse ler de novo todos os contos que acredita serem pouco recomendáveis às crianças, ou pedir auxílio a uma delas na interpretação dos textos — porque certamente elas possuem mais imaginação sobre o que é o mundo e a vida.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

ABC

Uma colega me disse que me disse que meu nome saiu errado, grafado com "e" (Felipe), no convite de luxo da formatura. Não liguei muito, até porque não participo de formatura nenhuma e muito provavelmente não poderei nem sequer colar grau, graças à nefasta criatura mencionada dois posts atrás neste blogue.

Mas o caso de errar meu nome é antigo e já me despertou emoções as mais diversas possíveis. Quando mais novo, costumava ficar irritado, às vezes nem atendia se me chamavam de Felipe. Grifava o "i" no meu prenome, explicava que a origem de Filipe é uma junção das palavras gregas "philos" (amigo) e "hippos" (cavalo), que Felipe é uma forma espanholizada do nome original. Mas nada adiantava.

Parece que meu nome é tão complicado de entender quanto seria se eu me chamasse Huckleberry ou Belerofonte. E no entanto só tem seis singelas letras, duas até repetidas, uma consoante sempre seguida de uma vogal. Quer dizer, mais simples impossível. Mas mesmo assim teimam em errar.

Hoje não ligo muito. Se as pessoas não compreendem a diferença de pronúncia entre "i" e "e", bem, problema delas. Deve ser o mesmo pessoal que pronuncia "teoria" como "tioria", que é uma das coisas mais bizarras que já ouvi. De qualquer modo, já não me recuso a atender se escrevem ou falam errado meu nome. Mas ainda assim isso demonstra um pouco de descaso, parece que as pessoas não se dignam nem a se deter um segundo para ver como se escreve ou pronuncia o diabo do nome. O pior é quando lêem algum documento meu e ainda assim erram.

Por sinal, sempre fico com pé atrás quando é um médico ou algum profissional do tipo que escreve meu nome errado na ficha ou na receita. Penso: "não sabe nem escrever meu nome, vai saber me receitar algo que presta?". Mas hoje só corrijo mesmo em caso de necessidade comprovada, como num cadastro onde colocam meu e-mail — porque se mudarem a bendita vogal a mensagem nunca chegará até mim.

Aí que eu rio quando falam do valor da educação, sendo que não sabem nem escrever um nome tão simples e corriqueiro como o meu, nem com todo o estudo e prática do mundo. E nem quando eu soletro!

P.S.: Nem vou adentrar as ridículas variações que já ouvi/li de gente que não sabe MESMO que existe o meu nome. Basta falar que o favorito do pessoal é (quando digo que "é Filipe com i"): FELIPI.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Todos juntos

Eu tenho pavor de quem acha que mobilização é um dever de todos. Eu dificilmente me engajo em causa que seja, acho já difícil cuidar da minha vida, que dirá abraçar os problemas dos outros, "lutar" por reformas sociais e não sei mais o quê. Mesmo assim, gosto quando são feitas coisas sérias e de pertinência minimamente relevante, o que NÃO ocorre com freqüência.

Acho engraçado eventos como o No Pants terem tanta aderência, quando esse mesmo pessoal podia se organizar para fazer qualquer coisa que prestasse. Mas não, ir sem calças pegar doenças nos bancos do metrô é mais cool. Centenas de seres pululam dos becos da cidade nos dias programados e andam por aí, se achando transgressores (sendo que antes eles precisam avisar ao Metrô), originais (sendo que esse tipo de coisa já foi feita em mais países que os reconhecidos pela ONU), ousados (sendo que a maior "ousadia" são as sósias de Mercedes Sosa achando que desfilar de roupa de baixo as faz virarem sósias da Shakira).

Outra mobilização cretina é o pretenso espírito de patriotismo que assola o país em tempos de Copa. Esse mal é tão batido que ainda me admira que a maior parte das pessoas ainda insista nesses "orgulho-de-ser-brasileiro" (-que-só-dura-até-a-primeira-derrota-nos-jogos), com direito a bandeirinhas a torto e a direito, lojas e casas enfeitadas com o verde e amarelo, surto coletivo nos dias das partidas (amanhã o Brasil estréia, e lógico que nem sairei de casa).

E outro transtorno quase sem escapatória é a Parada Gay, uma das mobilizações mais infelizes de que se tem notícia. O objetivo alegado é celebrar as diferenças, extirpar o preconceito, acabar com a intolerância. Qual! O que eles querem mesmo é avacalhar com a cidade, sujar tudo, emporcalhar as ruas, fechar as vias de trânsito, causar transtornos inenarráveis, turbar a vida cotidiana da cidade (eles lacraram até a Paulista nessa última edição). Isso só reforça o que eles dizem não querer: a segregação, a afetação, a inconveniência. Quando entenderão que o correto não é respeitar uma pessoa porque ela não é heterossexual, mas sim respeitar os que não são heterossexuais porque eles são pessoas? O reacionarismo está nisso, nessa intrusão com ares de análise comportamental, social, sexual, científica, psicológica, o que seja. Não me interessa saber com quem as pessoas dormem e nem com quem elas acordam. O ideal no dia da parada seria ficar em casa e ver um filme de Pasolini, de Fassbinder, de Murnau, não porque eles eram homossexuais, mas porque eles eram ótimos cineastas, e é isso que interessa.

sábado, 12 de junho de 2010

A maldade

Às vezes eu fico curioso em saber de onde vem a maldade. E eu já descobri, pelo menos da maldade a que estou cotidianamente exposto: ela vem do pequeno poder.

Eu estou tendo aula este semestre com uma professora de fama nefasta, cuja diversão é aumentar o histórico de barbaridades imputadas a ela: essa senhora cada vez está mais intratável, indelicada, incoerente e outros "in" que eufemizam a real dimensão do problema.

A minha faculdade funciona com um sistema em que é preciso fechar o semestre com média 5,5 para ser aprovado. A primeira prova dessa simpática cidadã foi corrigida de uma maneira ímpar e sagaz, fazendo a média da sala girar em torno de 3,5, 4,0. Eu, como sempre me supero, fiquei com 3,0, apesar de ao final da prova acreditar (e seguir acreditando até hoje) que ficaria com 7,5, pelas respostas colocadas.

Portanto, precisava de 8,0 pontos na prova final dessa professora tão justa quanto didática. Estudei, li apontamentos, livros e meu caderno e leis. Na hora da prova, a surpresa (que não surpreendeu ninguém): matéria que ela não deu, pegadinhas mil, prova tão bem escrita quanto bem dada a aula da madama.

E hoje saiu minha nota: 4,0, a metade exata do que eu precisava; sendo que eu SABIA que pelo menos cinco pontos eu tinha garantidos, pois minhas respostas batiam com o gabarito. Mas como lógica é o que menos se deve esperar num lugar como o em que estudo, está aí o resultado.

E aí volto ao começo deste post: o pequeno poder. Essa comadre vive de ter orgasmos esporádicos reprovando alunos no último semestre da faculdade; não sabe dar uma aula minimamente decente, não é nem sombra de bonita, interessante ou agradável e obviamente sua vida não teria a menor graça se ela não passasse aos outros, em forma de vexação, humilhação e violência, um pouco dessa frustração que ela sente por ser um exemplo de fracasso. Chegar até o décimo e último semestre de um curso para uma dondoca rabugenta dessas achar que dita e desdita as regras do mundo é deprimente. E como ela não tem um real poder, não manda mais que em sua republiqueta de bananas imaginária, ei-la sendo perversa, cruel e má com quem nada pode fazer para defender-se: os alunos. O covarde age assim: esmagando quem não pode esboçar reação. E essa professora é ruim dessa maneira torpe: infernizando a vida de seus estudantes, pois sabe que nunca conseguiria atenção deles sem esse artifício malvado, porque não tem qualquer qualidade positiva que a destaque, nem qualquer capacidade ou talento de se fazer memorável através do simples desempenhar de suas funções. Sua existência consiste em tornar a dos outros um pouco mais difícil.

All she need is love, mas como pode ser amada se a maldade já deformou suas feições, olhares e ações?

domingo, 30 de maio de 2010

Globo

Uma das minhas maiores frustrações é nunca ter viajado ao exterior.

Verdade é que nem ao interior fui muito; mas eu queria tanto cruzar o oceano, respirar o ar dos outros continentes, pisar em solos totalmente alheios a minha cultura cotidiana... Só viajei através dos romances de Jules Verne e das páginas da National Geographic. Inúmeras razões me impediram de realizar esse até agora insatisfeito sonho, que quando mais jovem pensei em concretizar numa espécie de devaneio tintiniano: ter um amigo em cada país do mundo — tantas línguas, tantas diferenças...

Mas eu vou vivendo aqui nesta prisão urbana, tentando compensar essa lacuna no meu espírito com algumas distrações. Esta semana que acabou, por exemplo, me deixou felicíssimo no campo dos idiomas, esse passaporte ao mundo todo: eu fui em alguns eventos culturais e consegui entender, sem tradução de espécie alguma, os convidados falando em francês, espanhol e inglês, cada pessoa com um sotaque, uma maneira de falar, de pausar, de se comunicar. Isso me encheu de uma serena alegria, e aí percebi que como nunca pude ir ao mundo, o mundo veio em parte até mim: eu posso ler um romance em espanhol, ver um filme em francês e ouvir música em inglês e decifrar todas essas línguas, bênção das bênçãos.

Não sou o rei da fluência, mas nesses anos de espera (espero) antes de eu fazer o giro do planeta eu posso ir conhecendo um pouco de seus habitantes.

sábado, 29 de maio de 2010

Depressão

Não vou me estender falando o que acho de cada um desses lamentáveis capítulos na história da vergonha humana, apenas colocarei palavras chaves sobre os principais aspectos de cada problema:


> Seita - Loucura - Falta de amor próprio - Autismo voluntário - Insanidade - Desespero
* Verdade seja dita, pelo menos a tal Bruna, a menina no fim do vídeo, se portou com decência, apesar de não estar num evento muito digno.


> Vulgaridade - Exposição desnecessária da intimidade - Baixo nível - Valores esdrúxulos - Feminismo de butique - Sujeira

http://estilo.uol.com.br/album/sem_namorado_album.jhtm
> Avacalhação - Hipocrisia - Comércio - Pose - Idiotice - Descartabilidade de relacionamentos

Como diz a minha avó, "é cada uma, que dá dez".

P.S.: Descobri hoje que García Márquez roteirizou um filme protagonizado por Hector Bonilla!

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Pinga (e coça)

Nunca ingeri nenhuma bebida alcóolica. Não diretamente, pelo menos; talvez já tenha engolido algum refrescante bucal por engano num gargarejo. Mas o fato é que conscientemente o único álcool que botei na boca foi de dois tipos que quase nem contam: o da hóstia (que duvido que fosse de verdade) e o de várias balas de rum (que também duvido que fosse de verdade) que devo já ter comido em diferentes momentos da vida.

Não que não ingerir álcool faça de mim uma pessoa melhor (também não faz pior), é só que eu realmente não tenho nenhuma curiosidade ou interesse em beber. E por detestar a cultura dita boêmia, como já falei por aqui, me afasto disso tudo. Nunca saí em uma foto segurando um copo de cerveja junto a colegas de faculdade; nunca discuti sobre as melhores safras de vinho; nunca quis saber quais as diferenças entre uísques, conhaques e todas essas águas que passarinhos não bebem.

Não acho que seja motivo de orgulho, mas também não é para me envergonhar. Só sei que pensei uns tempos atrás sobre outra razão por que de fato nunca correrei atrás desses produtos: o vício.

O vício é uma praga incontrolável, porque sai de você e não há como controlá-lo. Essa idéia é terrível e assustadora. Novamente fui picado por formigas ou pernilongos esta semana, e o simples contato ou fricção com a pele dá uma vontade louca de coçar a região atacada: mesmo que eu não queira fazê-lo, a muito custo me contenho, dependendo do caso — por exemplo, se tenho que andar na rua e meu calcanhar havia sido palco (e prato) do banquete dos insetos.

Aí penso: se até uma coisa inofensiva dessas causa uma agonia por ser irresistível, o que será o vício em bebida?

Não sei. E não quero saber.

P.S.: O catolicismo da hóstia morreu no meu agnosticismo desconfiado...

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Lápis

Acho que a vida mais se assemelha a um texto de Kafka que a uma crônica de Fernando Sabino, mas às vezes eu acho tudo tão engraçado e encantador quanto nesses pequenos relatos cotidianos. Por estes dias eu pude presenciar alguns acontecimentos e diálogos dignos dessa forma literária.

Primeira situação - Vendedor ambulante vendendo uma daquelas peças de desenho que consistem em encaixar um lápis ou caneta no apetrecho e rodopiar os traços, criando rabiscos variados e expressivos. O camelô comentava as vantagens do produto a um cliente em potencial:
— Isto aqui desenvolve a coordenação motora da criança!

Segunda situação - O mesmo vendedor, outro dia, também elogiando o produto:
— É para criança e para adulto; na verdade, isto é mesmo uma terapia!

Terceira situação - Mãe e filha na rua, a filha (pequena) provavelmente havia entrado em um curso de inglês ou estava tendo aulas do idioma na escola. A menina pede para a mãe adivinhar o que é "pencil". Resposta da mãe:
— Hum, pênsil?... Pensar?

domingo, 16 de maio de 2010

Os meus mortos

A única coisa certa na vida é que todos morrerão (até alguns morrem antes de nascer). Mas não há nada mais desabonador do que ver seus parceiros, amigos, conhecidos, gente próxima morrendo. Hoje me senti assim quando recebi a inesperada notícia da morte de um velho ídolo meu, Ronnie James Dio. OK, ele estava com câncer, mas a notícia de sua doença havia sido divulgada há tão pouco tempo que eu não pensava que levariam o duende do rock com tanta rapidez.

Dio foi um dos nomes mais importantes da minha rockfilia; por volta de 2004/2005 eu, após um ano ouvindo só Led Zeppelin, passei para a minha segunda banda favorita, Deep Purple — e como eu sou compulsivo, eu procuro TUDO (discos de estúdio, singles, bootlegs etc.), inclusive as árvores genealógicas das bandas e artistas que admiro; o Rainbow era uma conseqüência natural, portanto, porque era a banda fundada pelo gênio Ritchie Blackmore quando deixou o Purple no meio da década de 1970. E Dio foi o primeiro e talvez melhor vocalista da banda. Só sei que o álbum Rising, dessa formação com Dio nos vocais, foi um choque absurdo. Eu passava dias ouvindo e reouvindo o disco exaustivamente, desbravando cada nota, cada acorde, cada solo, cada ruído e chiado. Ainda hoje é um dos meus álbuns favoritos, e claro que fiquei maluco com a banda, passei a ouvir (e ainda ouço) tudo que posso. E por essa época acabei pegando outros projetos e obras com a participação do Dio, como o não menos sensacional Heaven and hell, o primeiro disco do Black Sabbath sem o Ozzy.

Esses dois álbuns com o Dio de vocal foram absurdamente importantes para a minha vida. E é por isso que fiquei chateado com a notícia da morte dessa grande voz, esse mestre de vitalidade e talento, que deixa o palco no meio ainda de uma performance que não parecia querer acabar assim, de repente.

Mas o que homens assim fazem fica para sempre, e eles se tornam imortais e nunca abandonam a gente. Este é um exemplo entre mil:

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Fato

Solidão é minha única companheira (anotem essa frase, se ela já não foi usada podem patenteá-la para o ramo da caminhonaria).

Eu sempre fui, a despeito de tudo, um sujeito esperançoso e otimista (apesar de todos sempre pensarem o contrário); mas acabei percebendo que certas coisas não mudam nunca, e minha solidão é uma delas. Eu me sinto muito sozinho, muito mesmo. Não tenho amigos, não tenho namorada, às vezes penso que ninguém mesmo se importa comigo (nem eu, às vezes). Apesar de eu ter criado uma certa "couraça" contra os efeitos desse mal, por já tê-lo junto a mim há tantos anos e já meio que tendo me acostumado, nunca se pode falar que dá para não ligar para a solidão. Quando a solidão se instala, é como se tudo que você planejou para zombar dela virasse pó e a sua vida de repente perdesse o segredo da dúvida e se afirmasse inquestionavelmente como uma grande idiotice, sem retorno.

Já cansei de ter esperança, sei que no final das contas um trilhão de fatores concorrem para sempre me deixar vagando por aí à procura de oportunidades que nunca ocorrerão.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Tubaína

Ontem saiu a nova Zingu!. Eu sempre gostei dessa revista, e colaboro mensalmente (sem interrupções) desde janeiro de 2007 — portanto, quase três anos e meio; verdade é que muitas vezes pensei e penso em parar, porque não há público para o que escrevo. OK, sei que escrevo mal, mas vivo falando que escrever isso só para mim não dá pé; este diário mesmo eu comecei só para mim e hoje tenho felizmente alguns leitores com espírito altruísta, verdadeiros bons samaritanos virtuais, que se dedicam a comentar algumas das pataquadas que publico (o que é muito bom).

Mas enfim. Meus textos nessa última edição são sobre Sandrine Bonnaire e minha costumeira mania de importância. Essa edição traz ainda dossiês sobre a Vera Cruz e sobre o Luís Sérgio "Pelsão" (como diz o Mojica) — é uma pena que eu não sabia (ou me esqueci?) que esse material sairia, porque eu bem que gostaria de ter colaborado com pelo menos um texto sobre um filme de cada um. Fica para outra encarnação.

P.S.: O texto da Sandrine foi sem dúvida o mais trabalhoso que já fiz para a revista; fiz uma maratona intensa com os filmes que me faltavam ver da moça.

P.S. 2: Um dos primeiros lemas da Zingu! é ser contra a escrita estilo Cahiers du cinéma, mas eu sempre quero escrever como François Truffaut.

P.S. 3: Finalmente voltou o frio! Que fique.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Roda

Impressionante como moda pega.

Hoje, no sempre útil portal da Globo, me deparei com esta beleza. Não sei quem foi o doente que instituiu oficialmente mulheres grávidas como algo sexualmente atraente (?), ou minimamente bonito plasticamente. Olha, eu devo ter muitas perversões, mas essa com certeza não está na relação. Vamos dizer a verdade: é horrível. E mesmo se não fosse, é chato todo mundo fazer igual. Por que as esposinhas-modelo não ficam bonitinhas gravidinhas comportadinhas em suas casinhas à espera de seu rebento? Não, elas tem que mostrar nuas a barriga inchada, como símbolo de poder e rebeldia (seja diferente dos outros fazendo o mesmo que todo mundo). Claudia Schiffer, Demi Moore, Monica Bellucci, Fernanda Lima, Danielle Winits, Daniella Sarahyba, Christina Aguilera, Ticiane Pinheiro e sei lá mais quantas dondocas já posaram desse jeito para as lentes de fotógrafos desocupados. Parem com isso enquanto é tempo, Leilas Dinizes de araque.

Outra moda bastante repelente é do álbum da Copa. Entendo que possa ser um bibelô atraente para os fãs de futebol, ou até para colecionadores de figurinhas (espécie que perigava de entrar em extinção), mas de repente todo mundo passou a gostar DAS DUAS COISAS! Vejo meninas de dez anos trocando figurinhas de jogadores e nerds fãs de ficção científica comprando álbuns e pacotinhos de cromos. Ah, qual é? Por favor, né. Que diabo de coisa horrível, dá até agonia, o povo compra tudo que: a) a mídia empurra; b) os amigos consomem. Quanta dificuldade em ficar de fora da turma...

sábado, 8 de maio de 2010

Jaula quase aberta

Desde 2005, quando entrei na faculdade, tive problemas com a instituição. À parte seu abominável corpo docente e outros problemas tão lamentáveis quanto, esbarrei em burocracias estúpidas, alguns atendentes mal treinados (e mal educados), incoerência em tudo, critério em nada. Então eu tomei a mesma decisão que tomei com relação à política, algo que, como eu já disse em um post anterior, não me alcança e não me representa: agora eu simplesmente me ausento dos assuntos da faculdade. Não pertenço a lá, não quero saber de nada relacionado.

Desde o começo da faculdade eu não fui a festas, encontros, palestras não obrigatórias, eventos, não freqüento salas de estudo, dificilmente vou à biblioteca, não faço nada disso; mas ainda fui além e não dei um centavo à comissão de formatura (não quero oficializar com fingida alegria o fim de um tormento), não votei para escolher os professores que deverão ser homenageados no fim do curso (exceto numa fase posterior, com candidatos já selecionados de maneira pavorosa, em que votei para impedir que certos crápulas acabassem levando a distinção [deu certo em parte]), não falo a ninguém que estudo lá, só apresento a carteirinha da faculdade para ter desconto em cinemas e shows.

Eu não sou de lá, eu quero que minha passagem por esse local seja considerada uma curiosidade em minha biografia (e não um capítulo importante), eu não quero propagar e de certa maneira aclamar o nome de um lugar que para mim é sinônimo de sofrimento e desgaste.

E obviamente eu não vou em formatura nenhuma. O único aqui de casa que não cedeu à vontade dos pais de ver seu filho na festa, com smoking, a tradicional foto e mais tudo de praxe. Não bebo, não fumo, não me drogo, não tenho amigos lá, detesto os professores, não conheço os funcionários, odeio festas, sinto sono à noite, não gosto de ir para longe de casa muito tarde, não tenho o que fazer lá; e ainda economizei um baita dinheiro.

Eu não me quero associado àquele antro.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Donzelices

Eu ia fazer considerações algo negativas sobre envelhecer e sobre meus inúteis — pelo menos até agora — vinte e três anos neste vale de lágrimas, completados hoje; mas como sempre prefiro falar mal dos problemas dos outros, mudei de assunto.

Umas semanas atrás coloquei um vídeo sobre uma atrizinha reclamando da revista Playboy, confirmando que não sabe do que ela trata e resumindo a publicação a pornografia. Eu não sei porque o sexo, mesmo tão vulgarizado, é tão ridiculamente entendido e comentado. Eu digo isso após ler esta notícia.

Quanta patetice! Os progressistazinhos querem diminuir a maioridade penal e trancafiar em escolas do crime adolescentes que mal saíram dos cueiros e reclamam de uma moça emancipada de dezesseis anos que mostra um seio (UM seio) em uma peça de teatro? Procurar o que fazer que é bom, não? A argumentação é pior ainda que o chilique. Pedofilia? Ora essa, a menina não vai ser abusada e disso não virá qualquer trauma, discutir algo assim chega a ser quase ofensivo: alguém teria pensado em algo assim caso os revoltados defensores da moralidade não tivessem esbravejado tão veementemente? O pior é isso: serviu para divulgar o espetáculo, que eu nunca tinha ouvido mais gordo.

A moça que ilustra este blogue, Sandrine Bonnaire, apareceu inteiramente nua, aos quinze anos, em Aos nossos amores, do mestre Maurice Pialat; por sorte os franceses não têm esse código puritano esdrúxulo da nossa pátria tupiniquim, ou uma das maiores interpretações femininas do cinema seria engavetada pelos impávidos heróis que estão querendo mutilar a tal peça (ou até proibir sua exibição). Ao que eu saiba, aparecer desnuda em seus anos de adolescência não trouxe qualquer tipo de problema psicológico a Sandrine Bonnaire, ao contrário, daí por diante ela foi cada vez mais se firmando como uma das melhores atrizes da história do cinema francês. Mas qual! Ela aparece sem roupa antes dos dezoito, crime abominável!

Nunca vi maior disparate. Se não há exploração ou qualquer tipo de constrangimento ou ameaça, qual o problema da tal garota mostrar o seio ou o que quer que seja? Estamos virando abomináveis cultores da irracional politicagem do correto.

Quero ver agora mandarem ao Ministério Público o primeiro filme do Menino Maluquinho, em que o protagonista, uma CRIANÇA, aparece em nudez frontal — sendo que a cena foi incluída no filme com o torpe propósito de mostrar o personagem... tomando banho! Pode mostrar não, meu sinhô. Melhor deixar a criança suja que mostrar nudez de menor.

Essa moça da peça comprova o que eu disse posts atrás: as meninas de dezesseis têm um pensamento mais maduro que os guardiães de suas decências.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Dom

Sempre me fascinou a música e seus intérpretes; quando vou a concertos, dificilmente me concentro integralmente na peça, sempre fico observando as reações dos músicos, suas hesitações, seus medos, nervosismos, movimentos. Também o maestro, misterioso feiticeiro a mexer a batuta em gestos histriônicos que parecem fazer todo o sentido para a orquestra. A perfeição de se tocar e conhecer nota por nota uma composição musical, ler partituras como quem lê uma notícia de jornal, tudo isso me intriga e comove. Tempos atrás percebi que muitas vezes escrevi sobre isso em contos, subliminar e inconscientemente, descrevendo moças violinistas, regentes, músicos amadores e todo tipo de gente desse meio.

Música é uma das mais nobres expressões de uma alma, e uma das coisas que sei que nunca serei capaz de produzir ou entender de modo satisfatório. Eu tenho um violão extraordinário, mas minha capacidade morre nas primeiras notas, a despeito de eu ter tomado aulas por tempo considerável com um professor de bastante competência. É questão de dom. Você pode treinar, mas não desenvolver o surgimento de algo que não existe.

Hoje eu comprovei isso mais uma vez, ao passar bons momentos impressionado com certos vídeos descobertos por puro acaso no YouTube, estrelando uma jovem violonista, de nome Raíssa Amaral. Essa menina nem ao menos saiu da adolescência mas tem um talento tão impactante que creio que em breve os amantes do violão não esquecerão seu nome. Pelo que consegui apurar, são vídeos caseiros (até ouvimos cachorros e pássaros de trilha de fundo, às vezes!), a garota não vive de música e é geralmente orientada por um professor (certamente também entusiasmado com sua potencialidade). Ela toca de memória peças difíceis ou não, complexas ou simples, mas sempre com paixão a cada acorde, a cada dedilhado. No canal que ela criou no site para divulgar suas interpretações é possível conferir toda a extensão de alguém que tem o dom, esse tipo de coisa que eu falei que não se adquire, mas que quando se descobre é lindo de ver. Alguns exemplos, só para constar:







É incrível observar uma pessoa exercendo sua verdadeira vocação.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Julgue um livro pela capa

Eis-me andando hoje e numa biblioteca de estação de metrô mais uma vez paro embasbacado com a incrível beleza desta capa:

As pernas nuas da moça na capa, o ângulo de inclinação de uma perna comparada à outra, a beleza das cores (o branco quase pálido da pele, o rosa da camisola, os verdes de diferentes tons que existem no colchão e na parede), o quadro com o nu disposto logo acima... E nem mesmo a marca da calcinha é de mau gosto como os "brega-detectors" adoram apontar: a roupa íntima da garota se encontra marcada mas não aparece o menor vestígio dela que não sob a camisola, o que dá uma idéia muito bonita de peso, leveza, contraste — até com a região descoberta da coxa. E o que dizer da posição em que a moça se encontra? Parece que ela está lendo, o que é mais sugestivo e bonito ainda. Enfim, uma capa perfeita, lindíssima. Tenho vontade de comprar esse livro sempre que o vejo, mas eu sou besta e quero ler Vargas Llosa em espanhol.

Mas na verdade este post é dedicado à minha decepção com as capas atualmente publicadas, sem distinção de gênero ou editora; são capas mortas, feias, padronizadas, de um gosto pavoroso. Vou colocar alguns exemplos de capas pavorosas (geralmente elas têm tons de preto, alguns brilhinhos ridículos, fontes "engraçadinhas", relevo, informações sobre números de venda etc.):

- Capa horrenda, tipo de letra absurdamente ridículo, cheio de constrangedores chamarizes (essa palavra existe?), frases de efeito, o contraste fácil entre o branco e o preto, a imagem ultraclichê de um botão de rosa, tudo um desastre total. Seria uma concorrente de peso para o posto de pior capa do ano, mas ela é tão parecida com inúmeras outras que a competição seria inútil. Mas esta ainda tem o adicional de colocar um aviso chamando crepusculetes para lerem uma obra consagrada há mais de cento e cinqüenta anos, o que é estapafúrdio e polui ainda mais essa capa nefasta.


- Não falei? Um trilhão de capas feitas da mesma maneira bisonha. Compre uma, compre todas. Costuma ocorrer o mesmo com esses livros, inclusive.


- A clássica desonestidade das editoras que consiste em lançar um livro com uma capa que remeta a uma adaptação cinematográfica que fizeram da obra; quase sempre fica horrível. E me irrita muito quando é uma imagem de um filme que desprezo, como se eu tivesse que necessariamente gostar da mesma maneira do livro e do filme.


- Eles continuam sem saber fazer capas. Parece capa de trabalho de escola, não me admiraria se me contassem que a imagem foi tirada do ClipArt.


- Informação demais. Mensagens edificantes. Fotos "de paz". Acho que podemos falar que virtualmente todas as capas de livros de auto-ajuda são tenebrosas.

Eu gosto muito das capas de literatura brasileira décadas atrás. Geralmente eram apenas desenhadas, e engenhosas, curiosas, belíssimas. Não empobreciam o livro e nem envergonhariam o leitor apanhado por acaso no metrô ou no ônibus. A seguir alguns exemplos:

- Desperta uma certa ternura pela delicada imagem feminina retrada, apreensão por sua aparente tristeza, além de ser de uma singeleza extraordinária e marcante.


- Impressiona pela "rudeza", pelo aspecto primitivo e artesanal, coisa cada vez mais rara nesse ramo hoje em dia; eu tenho essa edição e as ilustrações internas do Poty também são muito sugestivas e impactantes, algo que só vemos agora em quadros de arte naïf (e em literatura de cordel).


- Capa interessante e muito engraçada, já dando o tom das crônicas e contos que o Sabino escreveu. É limpa e chamativa, um exemplo brilhante de comunicação eficaz.


- Cria suspense, não só pela chamada acerca da "maior reinação do mundo", mas pelo inusitado da situação, Emília vestida apenas com uma saia esquisita (que depois descobriríamos ser de algodão), criança nua chorando, animais... O que se passa aqui é aquela sensação de curiosidade, que remete a um inevitável: "O que aconteceu?!".

Não me envergonho de falar: a capa pode me despertar o interesse por um livro, mas o contrário é o que ocorre cada vez com mais freqüência.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Cahiers

Eu evito falar de cinema aqui, por várias razões: primeiro porque já falo suficientemente de cinema em comunidades virtuais (então aqui é o espaço para falar de literatura, música, quadrinhos, da vida etc.); segundo porque escrevo regularmente para a revista Zingu!, publicação voltada ao cinema brasileiro mas que eu sempre corrompo com minhas observações nada pertinentes sobre cinema europeu e polêmicas vazias. Mas hoje resolvi publicar neste blogue uma pendência antiga com mim mesmo: a entrevista que fiz com Carlos Reichenbach. Naturalmente a entrevista não foi apenas minha, mas transcreverei apenas a minha breve participação (que foi justamente na parte final); a entrevista "oficial" e o dossiê sobre o Carlão saíram em uma das últimas edições da Zingu!, mas não me agradou a edição do bate-papo — a meu ver desnecessariamente impiedosa —, e afinal de contas o que mais gosto em entrevistas é a espontaneidade, o caráter de resposta-pronta, interatividade: o trecho a seguir tem tudo isso, e ainda pensarei em depois disponibilizar o áudio desse encontro. Não quero com isso qualquer tipo de auto-promoção, até porque nunca ganhei tostão algum escrevendo o que seja — quero apenas disponibilizar essa trabalhosa transcrição; sem mais delongas, eis o mais longo post da história deste blogue:

Gabriel [Carneiro, editor da Zingu!]: Vamos encerrar? Mais alguma pergunta?

Filipe: [Para Reichenbach] Só queria perguntar quais diretores você despreza, os “tapeceiros”... Eu sei que você não gosta do Michael Haneke, queria saber outros cineastas de que você não gosta.

Reichenbach: Haneke é nazista, só isso.

Filipe: Nazista? [Ri]

Reichenbach: Não gosto do Wong Kar-Wai, por exemplo.

Gabriel: Ah, Kar-Wai é muito bom!

Reichenbach: Bom? Bom pra quem?

Gabriel: Ah, o 2046 é maravilhoso, Carlão!

Reichenbach: Você está louco. Eu não suporto esse cara. Gosto é gosto!

Filipe: Eu também queria perguntar se o Cronenberg se ajusta nessa definição que você falou de “mostrar um filme sobre a violência, mas não compactuar com ela”; porque os filmes do Cronenberg são muito violentos, mas para mim é claro o posicionamento de que ele é um pacifista.

Reichenbach: A diferença dos filmes do Cronenberg, o que torna ele um dos maiores – a meu ver talvez um dos três grandes em atividade (indiscutivelmente há três grandes cineastas), não importa o primeiro dia no cinema, o dia em que entrar filme do cidadão... [Nota: aqui, Reichenbach quis dizer que não importa o dia da estréia dos filmes desses diretores, ele estará lá.] Martin Scorsese, Cronenberg e Brian De Palma. Mesmo quando erram – e erram pra valer [rindo] – são de tirar o chapéu, deixa eles errarem, vão acertar na próxima. O que marca o Cronenberg é que ele cria um universo e uma geografia muito pessoais, e se você levar à risca, ele cria uma metáfora. Não acho que ele faça filmes sobre violência. Sabe que eu fui o primeiro brasileiro que entrevistou o Cronenberg? Pra Folha de São Paulo, pro Folhateen. O primeiro, e a porra da editoria me bota um título lá que me deu uma raiva desgraçada: “O mestre do nojo”. Porque era a época de A mosca.

Filipe: O mestre do nojo é o Sady Baby [ri].

Reichenbach: Enfim, fui o primeiro que assumiu que gostava desse cara. E quando eu estava na Holanda, teve homenagem a ele, e eu vi tudo, Stereo, aqueles primeiros filmes... E eu levantei isso no debate, que eu acho que ele faz filmes sobre dor. O grande tema dele não é a violência, mas a dor.

Filipe: Mas é que também a dor física, e aí nisso vai um pouco da própria violência. [Reichenbach: Ah, sim, claro!] Principalmente nos filmes mais recentes dele, que o pessoal diz que são mais “limpos”, e eu não acho que são limpos, mas de qualquer modo... É porque eles vêem a superfície, e eu acho que o seu cinema também tem muito disso, uma coisa meio Claude Chabrol, ele pega o exterior da coisa, digamos, o Hitchcock, e o interior, que é o Fritz Lang. E o pessoal diz: “não, porque são filmes limpinhos, agora não tem gore e não sei que mais”, e eu não concordo com isso. Eu queria saber o que exatamente isso tem, se é uma coisa ocasional, sai por acaso, esse tipo de estética mais “interna”, não sei se é proposital...

Reichenbach: Quem definiu ele bem foi o Martin Scorsese, que falou que ficou muito impressionado com um daqueles primeiros filmes do Cronenberg, não me lembro qual, acho que foi com o filme que ele fez com a Marilyn Chambers [Nota: O filme é Rabid – Enraivescida na fúria do sexo], que é sensacional, por sinal. Aí convidou o Cronenberg pra casa dele, disse que gostaria muito de encontrá-lo, ficou entusiasmado. Quando abriu a porta, disse que pensou que ali havia uma pessoa que tinha se enganado de endereço, parecia um médico obstetra, um cara de paletó e gravata, de óculos [ri]! Eu fui num jantar, foi no ano em que fui acompanhando a produção de um filme estrangeiro chamado City life, co-produção com a Holanda e tudo; aí teve uma hora que todo mundo foi jantar num restaurante indiano, onde servem um prato coletivo, todo mundo em volta de uma mesa, um monte de pratinhos de arroz com um monte de coisinhas diferentes, e fica aquela coisa rodando, e você pega do prato de um, de outro... O Cronenberg foi para uma outra mesa comer separado, ele não conseguia misturar! O cara é muito louco. Ele não podia conceber pegar com o garfo dele a comida que você tinha botado no seu prato. Aí a gente estranha, o cara faz aqueles puta filmes nojentos... [ri]

Filipe: A gente pensa que o cara é o total pirado, mas na verdade é um sujeito certinho, tranqüilo...

Reichenbach: Parecia um médico obstetra! [rindo]

Filipe: É verdade, e inclusive ele fez um, em A mosca ele era o ginecologista da Geena Davis.

Reichenbach: Mas na hora de botar os demônios pra fora, ele bota! No fundo, os últimos filmes dele são mais wellesianos. O Welles dizia: “não consigo separar política do crime”. É o vértice mais wellesiano do cinema do Cronenberg. São mais políticos esses filmes, o crime é quase um partido, uma organização, uma estrutura quase hierárquica. Isso é o que é fascinante nesses filmes. Aqueles planos estranhos, A marca da maldade, aquele abertura, atravessa uma fronteira inteira, vai explodir um carro lá na frente... Deu pra sentir essa coisa de lentes deformatórias, sobretudo as bifocais – o De Palma é o grande mestre em usar isso, ele bota o cara em primeiro plano e tem outro lá atrás em foco, como tinha em Cidadão Kane... Por conta de preparar a minha “cinemateca”, vou ter que comprar outro HD, cada vez tem menos espaço, já tive que apagar uma pasta inteira de mais de setenta filmes para poder abrir espaço para tantos filmes, porque o intuito é de continuar mantendo esse material de pesquisa na mão, porque se algum dia me torna viável fazer o Cinema interditado... Só concluindo a história, depois de quatro anos e meio, o produtor chegou à conclusão: “Olha, vamos fazer as contas”, e acertou com um cara a compra dos direitos autorais. Essa série de filmes envolvia [ininteligível] Castro, Maomé, até filmes mais ardidos mesmo, filmes do Joseph [ininteligível], primeiro filme onde tem DP dupla – o que é um contrasenso, Dupla Penetração dupla –, as câmeras de tabus, de repente tinha que comprar um filme alemão horroroso, mas tinha que ter, senão ia ficar faltando. E é duro você trabalhar num material onde você deixa de falar alguma coisa por uma questão de censura, não pode ter censura. Todas as aberrações que o cinema já aprofundou, ou que existem, ou que tem uma ramificação lá dentro que é dedicada isso, eu fui obrigado a tratar. Vi cada coisa que você não imagina. Sabia que tinha aberrações de zoofilia, necrofilia, mas algumas coisas eu pensava como o ser humano pode chegar a esse ponto, atração à merda... São coisas que a gente só sabia no Teatro da Agressão, no material, claro, do Otto Mülh, que trabalhava isso de forma ritualística. Sabe quem é Otto Mühl?

Filipe: Só de nome.

Reichenbach: Nunca viu? [Filipe: Não, nunca vi.] Pois é, tem que ver! E isso você baixa de graça, inclusive pode ver no Museu Otto Mülh, são filmes de três, quatro minutos, fácil, rápido. Você viu Sweet movie?

Filipe: Do Makavejev? Vi.

Reichenbach: Nesse filme eles não levam a moça lá pra morar numa comunidade, que fica cagando no meio de um negócio lá?... É Otto Mülh! É a comunidade do Otto Mülh!

Filipe: É daquele jeito? É que eu tenho uma relação meio de amor e ódio com o Sweet movie, então...

Reichenbach: Mas é maravilhoso! Esse obviamente está no meu arquivo.

Filipe: Na seção de honra...

Reichenbach: De honra, esse filme é um exercício de liberdade. Especialmente as conseqüências, quem viu não acreditou, é um festim. [Filipe: É uma entrega.] Quando ele vai morar na comunidade do Otto Mülh, é um festim aquilo, você lembra dessa seqüência? [Filipe: Lembro.] Uma das cenas mais interessantes e mais bonitas que eu já vi, o desespero da mulher.

Filipe: É, o que eu penso do Cronenberg é meio o que acontece com o próprio Makavejev, que fazia um cinema mais “libertário” e só passou a ser mais aceito, referenciado em revistas e tudo, quando passou a adotar um padrão estético mais “comportado”, como aquele The Coca-Cola kid. O próprio Cronenberg sempre foi um sujeito muito sério e centrado, mas ninguém levava a sério, porque tinha esse tipo de coisa...

Reichenbach: Mas o Makavejev não foi descoberto aí, ele foi descoberto nos primeiros filmes.

Filipe: É verdade, eu tenho uma Cahiers du Cinéma bem antiga sobre ele.

Reichenbach: Um caso de amor, por exemplo, que é uma obra-prima.

Filipe: Mas o estilo mais famoso dele...

Reichenbach: É que ele acabou na verdade tentando fazer uma carreira internacional também, e fez um filme até com muito sucesso, Montenegro, que é um filme libertário, mas é um filme policial.

Filipe: O que eu penso é que o próprio cinema brasileiro sofre um pouco dessa incompreensão, está cheio de gente para quem eu indiquei Falsa loura que diz: “Ah! Filme com Maurício Mattar e Cauã Reymond? Nem vou ver!” E não vêem.

Reichenbach: É o preconceito contra o filme popular.

Filipe: O preconceito que nasce de fora do filme, não de dentro, isso que eu acho engraçado.

Reichenbach: Vou te contar, originalmente, a primeira opção minha, desde o começo, desde o início, quando imaginei fazer esse filme, sabe quem era, para ser o ator? Antes da atriz, antes de qualquer coisa, sabe quem era?

Filipe: Maurício Mattar?

Reichenbach: Não! [Filipe: Quem?] O primeiro ator que me veio à cabeça, eu quis fazer o filme com ele, encontrei dez pessoas que me falaram: “Não faça isso, você é louco, você não vai conseguir, o cara dá problema, o cara é problemático...” E eu: “Você não está entendendo, esse cara é o novo Marlon Brando!” O cara acabou de ganhar um milhão de reais...

Filipe: Dado Dolabella? [Reichenbach: Dado Dolabella.] Caramba!

Reichenbach: É o primeiro ator que eu queria de qualquer jeito para fazer esse filme. [Filipe: No papel que ficou com o Cauã Reymond.] Pois é! Porque ele canta, inclusive. Falei: “Já está feito!” Ele é o novo Marlon Brando! Você pode não gostar, mas ele é o novo Marlon Brando, indiscutivelmente. Que pena não ter feito o filme com o cara [ri], ele está com a popularidade lá na casa do cacete! Falaram: “Vou te criar problemas”, entendeu? A mulher que era produtora de elenco – estou te contando entre irmãos, hein? Não vou dar nomes agora, hein. [Filipe: Não vamos publicar isso! (ri)] Pessoas me falaram: “Não bota esse cara, ele vai dar problema pra chegar até o fim, o cara vai sumir, vai fazer baile de debutante e te largar na mão”. Porque foi a primeira pessoa que quis chamar pra fazer, tem que ser um ídolo, com cara de mau, jeito de badboy, não tinha ninguém melhor. Como tipologia, eu digo.

Filipe: Mas você chegou a convidá-lo?

Reichenbach: Não, não deixaram eu chegar! Disseram que era tão problemático que não dava. Ele é essa imagem do Nicholas Ray, Juventude transviada, seria perfeito não tem nem o que fazer! É só fazer o cara aprender a música e fazer o cara aparecer lá como ídolo! Você esbarra às vezes no próprio convívio. Quando eu fui chamar o Cauã, ouvi muitos “Você está louco!”. A primeira coisa que ouvi sobre o Cauã foi uma coisa horrorosa, uma baita mentira, na verdade. [Filipe: O que era?] Diziam que era o nariz mais caro do Rio de Janeiro. As razões são óbvias. Mas o cara nem chega perto disso! Se ouvir tudo o que falam... O grande prazer é quebrar esses tabus. É um prazer enorme. Eu e a minha produtora de elenco gostamos de brincar com isso, falei: “Vamos chamar a Suzana Alves pra fazer o teste”, e ela: “Pode chamar! Vai fazer o teste!”. Porque quando fiz Garotas do ABC, minha produtora de elenco já a tinha me indicado, aí várias pessoas falaram que não iriam levar a sério. Mas é uma grande atriz, trabalha com o grupo do Antunes Filho... Essa barreira do preconceito é uma coisa pavorosa, mas o prazer é quebrar essa barreira. No Filme demência resolvi pegar uma jurada do Silvio Santos. [Filipe: A Flor] E falei para ela que a personagem dela era uma homenagem à Dercy Gonçalves do início da carreira. E ela fez magnificamente, e me ajudou pra cacete, ela conseguiu botar duzentas pessoas caladas. Aliás, duas mil pessoas, fomos filmar em Osasco, você pode imaginar o que é filmar em Osasco de noite em um bar com as portas completamente abertas. No primeiro dia tinha trinta pessoas, no segundo, cento e cinqüenta, no terceiro, duas mil pessoas que não calavam a boca. Já tinha que gravar um cara tocando piano com um halterofilista fazendo evolução lá na frente [rindo], quem conseguiu calar essas duas mil pessoas? Ela: “Meus queridos, façam silêncio, o maestro vai tocar”. Ela conseguiu fazer duas mil pessoas ficarem quietas! Depois pediram e ela deu autógrafo pra todo mundo. Ela salvou minha vida ali! [Rindo] Foi a filmagem mais emocionante que já vi na vida, porque você pode imaginar o que duas mil pessoas falaram com o halterofilista lá na porta. [Ri de novo] O cara era Mister Universo. E ela lá: “Querido, querido...” Na hora de filmar o maestro, foi inacreditável, o maestro parecia um estivador, parecia que ia levar o piano embora, aí senta e toca como uma menina, uma exímia pianista, a delicadeza de uma mulher, e ele tinha uma mão mais grossa que a minha! A idéia era essa, achar o sublime onde você menos espera. O sujeito fazendo evoluções junto com a música de Debussy, uma coisa completamente estapafúrdia... Na hora de rodar, um silêncio tumular, e o homem começou a tocar. Na época a gente tinha que rodar o plano inteiro porque ia tocar a música toda. Tinha duas câmeras montadas, depois iam fazer os corte, as inserções. E a gente rezando: “Pelo amor de Deus, que ninguém grite, que ninguém toque a buzina...”. Tinha som direto, mas uma câmera só que não fazia barulho, não podia passar um caminhão, um ônibus, já tinha gente segurando os ônibus que passavam, sempre tem um idiota que vai tocar buzina, e a gente ficava rezando: “Tem que dar! Tem que dar! Não pode ter barulho”. Silêncio lá fora. Quando o maestro começou a tocar, eu mal consegui vê-lo. Só o maestro tocando, duas mil pessoas paradas na rua, num bar de esquina. Você dá um “Corta!”, ele não escuta. Estava todo mundo extasiado vendo. Desliguei a câmera, estava emocionado, duas mil pessoas lá dentro. Aquele povo inteiro de Osasco aplaudindo e o maestro tocando. Tinha gente que acho que nunca tinha ouvido Clair de la lune do Debussy na vida!...

Filipe: Não naquelas condições, pelo menos.

Reichenbach: Aquele homem enorme, imenso, lá dentro, parecia um urso [ri], tocando com a delicadeza de uma menina! Uma coisa absolutamente emocionante. Aí me perguntaram como nasceu isso. Um ano atrás eu tinha assistido a um show de vanguarda e lá aconteceu exatamente essa sensação, era um evento chamado Festival de Música Nova e realmente tinha um piano de cauda lá, tocavam nele uma música brega, barulhenta, e entra ele [esse personagem de Alma corsária]. Eu te juro que pensei que fosse um funcionário da casa, que ia tirar o piano para colocar outro instrumento! [Ri] O cara senta e toca Debussy! Eu tinha que usar isso, nunca vi delicadeza tão grande. Mas no filme a gente botou o cara como estivador, suado, pra não passar pela cabeça que o homem iria sentar no banco e transformar aquilo num momento de magia. Mas na hora da filmagem, duas mil pessoas aplaudindo o maestro espontaneamente! Se isso aconteceu, a seqüência está ganha. A gente sentiu na hora que era a seqüência-chave do filme. A platéia não vai levantar antes do maestro. No final da seqüência entendemos que o filme iria ganhar. E transmitir isso é legal, quebrar preconceitos, o jogo também foi esse. A existência dessa seqüência foi um pouco por esse caminho.

Filipe: E fazer um filme bom é uma recompensa por essa busca.

Reichenbach: Ah, sim. O problema nem é fazer um filme bom, mas procurar pelo menos meia dúzia de pessoas que entendam o que está na tela! O grande retorno que você tem é encontrar o interlucutor onde você menos espera, seja aqui, na Conchinchina... Uma vez fizeram uma retrospectiva numa cidade parecida com São Bernardo, passaram Dois córregos numa sessão especialmente para alunas de cinco escolas públicas. Todas meninas com idades das protagonistas do filme, o mais belo debate de que já participei na vida, acho que o filme foi feito sobre elas, elas entendiam coisas que o espectador no Brasil não entende. É a intimidade, você lida com os sentimentos etc. O retorno maior é achar essa interlocução onde você menos espera. E acho interessante que se discuta sobre o que, num determinado momento, torna um filme maior ou menor. Como o filme pode ser devidamente compreendido, valorizado, a partir do momento em que você vence as suas limitações de tolerância. Às vezes me pergunto por que gosto de um filme; por que gosto do Joe D’Amato? Nem vou me aprofundar nessa questão, eu gosto do Joe D’Amato como gosto do Oswaldo de Oliveira! Da mesma forma. Pode ser um dos caras que entendem de cinema profundamente, aprendido na vida, na prática do cinema. Bonito um documentário do Gallante em que ele diz que, sobre Oswaldo de Oliveira, que conheceu “pouca gente que entendesse tanto de cinema”. E é verdade. Era um cara que não aprendeu a linguagem cinematográfica nos livros, foi na prática do dia-a-dia. O Joe D’Amato foi a mesma coisa, também foi fotógrafo, era um homem mais “tosco”. Nas entrevistas sobre ele, os atores falavam que não gostavam dele, não sabiam que filme iriam fazer, mas que iam trabalhar com ele pelo prazer de filmar com ele, as pessoas se sentiam muito bem de trabalhar com ele, ele era de bem com a vida. A Laura Gemser quando resolveu parar de fazer cinema, deixou de ser atriz para ser figurinista do Joe D’Amato, ela poderia fazer o que quisesse, virou uma mulher mítica, até tinha aquela brincadeira, ex-Miss Java [“mijava”], é verdade, ela foi Miss Java. Dizia que o D’Amato era um homem que conhecia cinema profundamente e uma pessoa muito prazerosa de se trabalhar com, o tempo inteiro se divertindo, ela não queria mais ser atriz mas gostava de figurinos, e pediu a ele para ser sua figurinista. Foi figurinista dele em mais de dez filmes. [Incompreensível] Todo mundo gosta! Sempre digo que é o melhor filme péssimo que já vi. Mas não se leva a sério. O D’Amato não se pode levar a sério. É um filme tosco, muito bem filmado, em alguns momentos lembra inclusive A ilha dos prazeres proibidos, tem uns planos de carros passando pela cidade, muito engraçado. Mas você percebe que existe um alto astral, não pode ser babaca e falar: “ah, que história boba”, você tem que se divertir! Eu ria pra cacete com os filmes do Mojica, adorava, me dava muito prazer de ver. Aí você entende por que o cara é capaz do melhor e do pior. Que nem Jesus Franco, o caso mais notável que já conheci, o homem que mais fez filmes no mundo, um dos, acho que o D’Amato acho que fez mais. Mas o Franco fez mais de trezentos e tantos filmes, ele fazia três filmes ao mesmo tempo. Um dia você tem que entrevistar um cineasta português que mora no Rio Grande do Sul, estou cobrando, vale a pena, ele foi assistente do Jesus Franco. Eu descobri isso sem querer, ele escondia, mas aí eu fui conversar com ele e ele abriu o jogo. Um dia que você for pro Festival de Gramado... Ele é um português que fez dois longas-metragens, um dele se chama O homem que deve morrer, interessantíssimo, ele foi amigo pessoal e assistente do Nelson Pereira dos Santos em Memórias do cárcere. Ele foi assistente do Jesus Franco, o homem que mais filmes fez na face da Terra. Trezentos e sessenta filmes, ou o que seja: trezentas e cinqüenta merdas, dez obras-primas. Quem fez trezentos e sessenta filmes pode muito bem ter feito trezentos e cinqüenta merdas, mas pelo menos umas cinco ou seis obras-primas, como bem diz o Albornoz, e inclusive um filme que hoje já é mesmo um clássico do cinema, Vampyros lesbos. Ele tem fãs incondicionais, no mundo todo, tem sites e blogs dedicados a ele, gente apaixonada. Obviamente também estaria no Cinema interditado. Ele fazia aqueles filmes sobre sexo mesmo como resposta à ditadura do Franco, a briga dele era com o Franco, o ditador.