sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Relógio

O tempo é um dos meus grandes inimigos.

Às vezes eu não ligo pra ele, quando percebo que me sinto como se tanto pudesse ter dez anos (eu já sei como é) ou oitenta (eu imagino como seja).

Mas na maior parte das vezes sinto-me envelhecendo precocemente, ainda que minha cabeça seja mais de criança do que de adulto: não entendo de finanças, vejo mais importância em assistir a Doug todo dia do que em sair à noite, prefiro ler quadrinhos do que filosofia, não me interesso por política e meu avatar no Orkut é o Snoopy escrevendo em sua máquina.

O que acontece é que o tempo tem me enganado. Eu não o sinto passar. Foi comum nos últimos dias eu estar sentado no cursinho (onde pratiquei a "solidão voluntária", porque pela primeira vez eu deliberadamente não quis me enturmar com a chatíssima turma de lá) e não saber que dia da semana era, não me lembrar se já tive aula com um professor naquele dia, perder a noção de quando acordei e dormi, de quanto li no caminho da ida até lá, de quanto tempo durou minha viagem no metrô, de quando seria o intervalo, quase que os números do meu relógio perderam significância (e reparei ontem, pela primeira vez, como meu pobre relógio comprado há uns bons quinze anos está quase sem cor). Eu já vivo os anos como meses, os meses como dias e os dias como minutos. Tudo se repete e nada tem muita distinção. Basicamente sinto, como, vivo o mesmo todo os dias, com ligeiras pinceladas de diferenças.

Sei que quando o tempo deixar em paz meu pensamento, será já uma hora bem adiantada.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Divã

Já postei aqui que me sinto solitário, e cogito tentar começar a me acostumar com isso. Não que eu goste, deve ser meio impossível gostar plenamente da solidão, mas não deixa de ser uma forma obscura de se proteger da carência ou da falta de afetividade. Se eu fosse contar quantas vezes já me decepcionei com meu perene desejo de no final das contas ser importante para alguém, de fazer diferença no pensamento de alguém (família não conta), de ter aquele amigo, aquela garota, aquele colega, eu passaria mais dias do que se tentasse tirar toda a água do mar em baldes. Eu simplesmente sei que de alguma maneira a relação será insatisfatória até um término repentino, e não me apegar é o mínimo que posso tentar fazer para não sofrer mais.

O problema é que sou muito idealista, acredito sempre nas oportunidades (apesar de muitas vezes externar o contrário), e, como eu já havia dito neste blogue, isso não me serve para nada — sempre haverá alguém que arrancará a vitória do meu caminho e chegará antes, conseguirá o que eu desejava, conhecerá quem eu queria conhecer e eu não serei nem mesmo uma lembrança apagada, pois nada signifiquei.

Não adianta nem deixar de ser eu mesmo, acho que já sou tanto eu que me contaminei comigo mesmo. Tenho algo de intragável? Não sei, mas só sei que estou cada vez mais cansado de procurar agradar aos outros. E apesar de minha (acredito) boa índole, tenciono envernizar ainda mais minha couraça de cinismo, para agüentar o tranco da indiferença.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Mar

Ontem foi o último dia da Bienal do Livro aqui em São Paulo. Eu fui com o meu pai na terça-feira e não pegamos praticamente nenhuma fila, e lá dentro também estava consideravelmente tranqüilo — pelo menos considerando o movimento habitual desses eventos. Eis que hoje e ontem li e vi fotos sobre a quantidade de pessoas que estiveram lá nos últimos dois dias. Eu não sei exatamente o número, mas era algo próximo à população da China, ou mais.

O principal mal de uma cidade como esta é a superpopulação. É preciso ser muito estúpido para acreditar que a qualidade de vida é diretamente proporcional à quantidade de pessoas que se amontoam e se acotovelam diariamente em cada canto das ruas. A grotesca enormidade de gente concentrada em um local acarreta mil transtornos, desde a falta de oportunidades decentes a todos (em saúde, trabalho etc.) até a dor de cabeça que é o tráfego, as chances de entretenimento e a segurança dia após dia. É como se a cidade fosse uma roupa apertada: podem até caber todas as gorduras excessivas, mas é muito incômodo, pinica, deixa marcas, sufoca e é desgastante tentar viver nela.

Há coisa de dez dias fui conhecer pessoalmente um dos meus ídolos quadrinhísticos, o mitológico Robert Crumb. Crumb e seu amigo e parceiro também célebre, Gilbert Shelton, estiveram na FLIP umas semanas atrás e a Livraria da Vila os contatou para um evento de "pequenas" proporções em uma de suas unidades, com direito a entrevista e autógrafos. Por que as apas? Porque a fama colossal de Crumb despertou a aparição de uma leva bíblica de seguidores de quadrinhos e malucos de todos os tipos, que infestaram a livraria nesse dia como siriris em volta de lâmpada no verão. Eu estava com dois amigos, e foi uma luta para conseguirmos três dos apenas quarenta ingressos para a oficialização da lembrança com um autógrafo dos dois artistas. O evento havia sido escassamente divulgado e mesmo assim atraiu cerca de quinhentas pessoas — em um espaço que, lotado, responderia apenas pela acomodação de trezentas.

Eu já tive a oportunidade de conhecer pessoalmente alguns cineastas, escritores, quadrinistas e até atrizes que admiro, mas sempre tentando fugir desse espírito de multidão que parece já ser uma das tônicas da paulistanidade. Eu os procurava em ocasiões mais discretas, longe dos mil desconfortos dos eventos nacionais ou amplamente divulgados. Para mim, fugir das turbas não é uma questão de orgulho, vaidade ou iconoclastia, mas uma tentativa de respeitar-me fora da avassaladora corrente de indivíduos que, juntos, são mais solitários que eu sozinho. A melhor coisa da vida é estar sozinho numa sala de cinema domingo à tarde, prazer que em São Paulo parece uma narrativa fantástica. Aqui o lema é se integrar, entrando no bolo e sendo mais uma cabeça no gado indistinto que todo dia pasta alegremente esperando o abate.

Antes só comigo que mal acompanhado pelas multidões.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Labuta

O trabalho enobrece o homem?

Séculos atrás o trabalho era visto como uma atividade subumana, ofício de escravos. Perceberam depois de um tempo que escravo também era gente, e aí todo mundo começou a trabalhar. Hoje quem NÃO trabalha é considerando vagabundo e indigno.

Mas é o trabalho bom?

A meu ver, o trabalho é algo que vem distanciando o homem do que é realmente importante na vida. Não que garantir seu sustento seja irrelevante, mas não conheço muita gente que consiga efetivamente se desligar do trabalho fora do horário de serviço, ou que tenha muitas oportunidades de realização fora dele. O trabalho que era de escravo agora escraviza todos nós. Como isso? O que acontece é que queremos viajar, conhecer pessoas, comprar produtos e juntar um dinheiro para os anos da velhice, mas na verdade tudo que amealhamos não conseguimos realmente utilizar. Qual o sentido da vida se você fica trancado numa sala oito horas por dia e olha pela janela o dia escurecer sem que você tenha aproveitado? Aí quando você pensa: "é pra isso que serve a noite", qual! Além de ser por si só desmotivador ver que toda a luz do dia já se foi e que seu dia resume-se àquele resto escuro das horas finais do dia, bem, quem trabalha sabe: no final do dia dê-se por satisfeito se conseguir abrir os olhos. É o cansaço, o desânimo (porque amanhã é um outro dia), a falta de energia, e, quando você vê, você é um pai que não viu esposa e filhos, você é um leitor que desaba no segundo parágrafo do livro eternamente marcado naquela página, você é um amigo que só sai à noite e só com álcool e outros artifícios consegue fingir-se entretido nos momentos boêmios da alta noite e madrugada. Você não é nada, você já está morto, você trabalha para conseguir o que pensa que quer mas na verdade você nunca usará nenhuma dessas coisas, porque vai continuar trabalhando cada vez mais, e cada vez se cansará mais, e cada vez terá menos tempo para o que realmente te dá prazer, e cada vez menos condições de usar bem esse já exíguo tempo.

Eu quero voltar aos tempos em que o trabalho era só um meio. Porque o fim do trabalho é o próprio trabalho.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Mapa

Ainda duas considerações sobre o sistema "superior" de educação.

- Meus problemas com a faculdade de direito são mais do que evidentes, mas não é apenas por esse curso que tenho desprezo; acho ridícula toda idéia de ensino institucionalizado. Por exemplo, quando ouvimos falar que alguém estuda filosofia, pensamos logo: "esse aí deve pensar na vida o dia todo", mas não; o "conhecimento" que ele adquire na faculdade é o mesmo ensino maçante e ineficaz de todas as outras — a prova do curso deve ser com questões em que o aluno deve diferenciar o connceito de metafísica de Platão do conceito de metafísica de Aristóteles. Quer dizer, a mesma decoreba estúpida, a mesma falsa didática, o mesmo oco educacional, a mesma irrelevância. Não dá pra afirmar que alguém que faz faculdade de psicologia CONHEÇA psicologia, o que essa pessoa certamente conhece é um monte de correntes e teóricos que foi obrigado a decorar nos anos acadêmicos.

- Nunca me acostumei muito ao ritmo da faculdade e nunca gostei muito de estudar (pelo menos não como o estudo é geralmente entendido pela turba universitária: sente-e-decore). Ontem vi não sei que propaganda na televisão veiculando um anúncio sobre escola, crianças etc. E percebi mais uma vez que o problema está na estúpida (ou talvez inexistente) planificação que nossos excelentíssimos educadores estabelecem sem nossa opinião e consideração: quando somos crianças ou jovens, é tudo flores, alegria, aquelas matérias fáceis, nos saímos bem mesmo sem estudar, fácil sair sem traumas desse período da vida; aí crescemos mais um pouco e vamos para o Ensino Médio, os cursinhos, as faculdades — sem preparação, motivação, sem quaisquer condições que atenuem essa guinada brusca, esse repentino desamparo ("vocês não estão mais na escola, lembrem-se disso"), esse despreparo dos professores, esse "você-que-tem-que-se-virar-e-ir-atrás-do-que-quer", como se fôssemos capazes de mudar nossas vidas quando estamos tão vulneráveis e sem poder confiar em ninguém, sem saber o que fazer.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Educação

- Na sociedade em comandita simples, a responsabilidade do comanditário é limitada e a do comanditado, ilimitada.
- A pretensão à punibilidade das infrações disciplinares do advogado, a partir da constatação oficial do fato, prescreve em cinco anos.
- Os princípios da Administração Pública são: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Essas são algumas das coisas que tenho que decorar para o exame da OAB, que ocorrerá provavelmente no começo de novembro. São coisas que não servem para nada mais que provas de admissão e concursos e que não fazem nenhum sentido: com a lógica, não poderíamos nunca intuir que a televisão em uma casa é um bem imóvel por acessão intelectual, que fundações e associações não são a mesma coisa, que extradição, deportação e expulsão são coisas totalmente diferentes e que "tipo de licitação" não é sinônimo de "modalidade de licitação".

O mundo do direito é isso, esse volume enciclopédico de informações inúteis. E é também esse desrespeito para com a didática, pois a única maneira de entender tudo isso é decorando: de que outra maneira chegar à conclusão que os direitos sobre bens imóveis são também bens imóveis? Não há como raciocinar acerca de assuntos tão incompreensíveis e aleatórios.

As provas que cobram isso são testes que só comprovam que a tal educação que tanto dizem ser importante é um instituto falido e que não serve para nada, a não ser comprovar como a "inteligência" hoje é associada necessariamente à memorização. Eu não sou ator, nunca consegui decorar textos, letras de músicas, citações literais de livros, frases de celebridades. E aí está mais um dos meus problemas com o nefasto mundo jurídico, onde o que é valorizado é a robotização das informações, para sempre estarem lá disponíveis, mesmo que para nada ajudem.

Os concursos cobram rodapés de artigos de leis esquecidas, e os alunos têm que estudar mais de dez horas por dia. Para quê? Para entrar num trabalho burocrático e ganhar alguns milhares de reais por mês, ao preço de sua liberdade intelectual e de seu descanso mental — que evidentemente sairão comprometidos desse processo escravista de decoreba galopante.

Quem disse que as ciências exatas são difíceis? Com um pouco de treino e esforço, é possível ver como a matemática se estrutura, por exemplo; e daí entender música, arquitetura, desenho, até poesia. Mas com o direito nada disso é possível: o direito é sal que jogam em terras outrora férteis para o conhecimento. O direito é uma ciência pária que não se relaciona com nada que não interesses reprováveis. E portanto não tem sentido, como quase todas as coisas ruins da vida.

P.S.: Uma coisa boa da vida: O homem do Pau Brasil, de Joaquim Pedro de Andrade. Outra coisa ruim da vida: meu texto sobre o filme, escrito sábado de manhã.