Quando as coisas acabam, elas deixam uma marca indelével na gente.
Eu estou no fim da leitura de Don Quijote, a menos de cinqüenta páginas do término, e a sensação é dúbia: por um lado sinto-me extremamente feliz por ter lido uma obra tão linda e fascinante, e por outro é como se eu estivesse deixando uma parte de mim com a leitura. Acompanhei durante mais de três meses os devaneios do fidalgo e seu escudeiro, os dramas e comédias de que foram vítimas e também a vida de mil pessoas com que se depararam. E aí acabo assim, numa semana qualquer, já pensando no próximo livro a ler. Don Quijote morto mas imortal.
Também sinto-me estranho com o fim das relações, quando elas desaparecem desse modo inesperado. E um amigo se vai, outro o substitui, a gente vai vivendo, se acostumando com as ausências e tentando acreditar que a memória é suficiente para dar cabo dos momentos de agonia e torná-los felizes com as recordações de antigamente. Da mesma maneira que trabalhamos anos a fio em um prédio, nos realojam em outro edifício, outro bairro, e naquele antigo lugar de trabalho ficou um pouco de nossa História. E como isso pode ser recuperado?
A verdade é que precisamos a todo instante de paliativos para os sofrimentos que podem comprometer nossas vidas, remédios para as pequenas ou grandes infelicidades cotidianas. Então consumimos arte, saímos, conhecemos outras pessoas, mudamos de emprego e vamos estudar em outro curso ou faculdade, tentando um dia se ajeitar no definitivo e largar de vez o provisório; e vamos claudicando, batendo a cabeça, com os olhos meio inchados pelas lágrimas em vão repelidas das oportunidades perdidas, e tentamos ir em frente.
E aí cada vez mais eu me assombro com a sabedoria dos fabulistas, quando me lembro do diálogo entre o trabalhador e a morte narrado por La Fontaine:
Velho, caindo sob o peso de um feixe de lenha: — MORTE, morte, por que não me escutas?... Venhas logo, já não agüento mais, estou cansado...
Morte, aparecendo aterradora: — Que desejais, velho?
Velho, assustado: — Quero que me ajudes a recolocar a lenha nas costas.
Porque no fim das contas ninguém quer de verdade que tudo acabe de repente.
o mais aterrorizante é quando a gente trata o provisório como permanente sem saber, aí, do nada, a coisa some na sua frente. e isso piora quando se diz respeito a relação com pessoas.
ResponderExcluirSó tenho a dizer: uau! um post triste, mas tão bonito :)
ResponderExcluirMe faz lembrar de uma frase:
"Vida - coisa que o tempo remenda, depois rasga." Guimarães Rosa
Lipe, em meio à correria dos dias (estudos, atividades, tarefas...) tento sempre acessar seu blog, mas poucas vezes comento porque, realmente, cada comentário daria um outro grande post, e então prefiro "quedar-me silente" e apenas te admirar por mais alguma coisa escrita que refletiu exatamente aquilo que sinto/penso (em muitas das vezes). Mas não despreze esses seus leitores, que, como eu, não participam sempre. Isso só significa que o que escreveu foi tão profundo e refletiu tanto de nós mesmos, que às vezes o melhor é calar :)
Não é desprezo, é total falta de assunto! Mas eu de fato fico chateado com "leitores ocultos", porque sei que geralmente eles são uma ilusão. E estou cansado de escrever para mim mesmo...
ResponderExcluirCom ou sem comentários, no final das contas, você sempre estará escrevendo pra você mesmo. Haverá leitores e, às vezes, repercussão, mas o grosso do processo você fez, em todos os sentidos, sozinho, não?
ResponderExcluirMais ou menos. O blog é um diário de impressões íntimas, claro, mas se só eu leio eu não me sinto incentivado a ESCREVÊ-LAS, já que, de uma maneira ou de outra, sempre as carrego junto a mim...
ResponderExcluir